sábado, 28 de janeiro de 2012

Enfim, um pouco de humanidade


Trata-se de uma cobertura jornalística séria sobre o caso do Pinheirinho, coisa que, digamos, "está em falta" hoje em dia. Mas o que me chamou a atenção nela, para além de sua qualidade, foi o choro do repórter diante da desolação de uma criança desabrigada.

E não era para menos. A cena é realmente tocante. O olhar perdido da criança em meio aos escombros de seu antigo lar é, talvez, a síntese mais acabada da aflição dos deserdados do capital, é a estupefação de quem se vê joguete de forças que se lhe afiguram como ininteligíveis (dentre elas, o próprio direito). Aquele olhar é a fotografia do oprimido numa sociedade de estranhamento e alienação, uma sociedade em que pessoas são reduzidas a estatísticas, a meros refugos do movimento econômico de especulação do capital.

Não creio, no entanto, que o repórter tenha se emocionado por partilhar da minha perspectiva. A superfície do fenômeno em questão, que nada mais é do que a crueldade de um mundo incivilizado, que não poupa idosos, crianças e deficientes de sua guerra perpétua contra os pobres, é suficiente para comover quem tiver olhos para enxergar a opressão, ouvidos para ouvir o clamor do oprimido e coração para sentir um pouco que seja da sua dor.

Esta qualidade, com efeito, também está escassa. Se observarmos alguns comentários veiculados na internet (em páginas de jornais, redes sociais etc.), encontraremos desde a mais cínica indiferença ("os ocupantes assumiram o risco, sabiam que poderiam ser despejados a qualquer momento") até o mais brutal ódio de classe. Expressões como "extermínio", "raça de vagabundos", "oportunistas" e tantas outras, de repente, irromperam da fossa imunda onde viviam recônditas, pululando sem pudores. O inconfessável tornou-se palavra de ordem. A web fez-se um esgoto a céu aberto.

O contraste da cobertura e da reação do repórter, em particular, com a sua conjuntura é fascinante, pois realça a humanidade perdida (jamais adquirida, dirão alguns mais céticos do que eu) em nosso mundo. Poderão obtemperar-me que nunca foi próprio do homem consternar-se pelo mal que acomete seu semelhante. Entretanto, cito em minha defesa o jovem Marx, que, numa obra pouco conhecida, (apenas um "delírio da juventude", acusará algum althusseriano mais exacerbado!), propunha que ninguém pode ser plenamente feliz enquanto estiver cercado pela infelicidade dos outros, sobretudo quando estes outros existem em número elevadíssimo.

Se concordarmos com o jovem Marx, teremos aí um vínculo ético mínimo entre os homens. Nós o perdemos em algum momento? O individualismo doentio da sociedade burguesa conseguiu romper esse laço? Qual é o instante em que uma pessoa contempla a desgraça de milhares de desabrigados e se limita a dizer que "elas sabiam do risco", ou que as decisões judiciais devem ser cumpridas e ponto final?

Não vou me embrenhar nos caminhos tortuosos a que estas questões tortuosas podem conduzir. Falta-me bagagem filosófica para enfrentar o desafio. Limito-me a citar, apenas de relance, o dedo perverso do direito por trás de tanta insensibilidade. Não pode passar despercebido por nós que a argumentação daqueles que folgam com a calamidade em curso está recheada de elementos jurídicos, mesmo que todos os eventos envolvendo o Pinheirinho, até agora, tenham se pautado por flagrante ilegalidade. Se prestarmos atenção, veremos que  o raciocínio que culpa os próprios moradores pela tragédia que hoje se abate sobre eles, em verdade, envolve a chamada "teoria do risco" e a lógica da eficácia formal das decisões do Judiciário, em detrimento de seus resultados concretos. O direito deve produzir seus efeitos. As pessoas não são nada, a não ser um obstáculo à vontade soberana do magistrado. Em seu discurso oficial, o direito tem a pessoa humana como fundamento e como destinatária. Na prática, porém, ele vale por si mesmo. E se os interesses de milhares foram preteridos em favor dos interesses de um milionário, que seja. Dura lex, sed lex. Antes uma ordem injusta do que a "injustiça" imanentemente contida na suposta "desordem" de uma vida sem juízes e policiais para promover o monopólio "legítimo" da violência.

Parênteses: subitamente, emergiu no debate uma preocupação formidável com a satisfação dos créditos trabalhistas. Mas esses recém-convertidos a interessados na proteção dos direitos trabalhistas podem ficar descansados, pois, no que diz respeito à massa falida da Selecta, não há créditos de ex-empregados. Apenas o fisco consta como credor. Aliás, nunca é demais lembrar que a empresa de Nahas nunca pagou IPTU, e por isso dever-se-ia reconhecer, por presunção absoluta, o abandono da posse. Entretanto, nosso Judiciário nos dá prova de que a dicotomia entre posse e propriedade não passa de um capricho acadêmico, de uma formulação cosmética de pseudocientistas entregues ao fetiche das intermináveis e cosméticas classificações dos institutos jurídicos. Função social da propriedade e da empresa, teoria da posse-trabalho, valor social do trabalho... o que importa mesmo para o direito burguês é o título sagrado do domínio. O resto é perfumaria.

Como não poderia deixar de ser, o direito concorre para a desumanização em torno do caso do Pinheirinho. Ele inverte as prioridades que o senso comum indicaria como razoáveis, a não ser, claro, para os ranços da classe média mais resistentes aos patamares mínimos de uma civilização burguesa. Confesso ao leitor, não sem pesar, que anseio pelo dia em que nossa classe média descubra o iluminismo. Não é agradável para um socialista ter de recuar o nível do debate ao século XVIII.

Voltando ao repórter, finalmente. Seria aquele choro, então, um resgate da humanidade perdida nos descaminhos do direito e de outros fatores? Estaria eu demasiadamente impressionado com o fato, rendendo-me, quem sabe, ao mito do bom selvagem? Digo com certeza o seguinte: aquele choro rompeu, por um átimo que seja, com o estranhamento proporcionado pelo reino do capital. Rompeu, ainda, com o estranhamento que o direito cria entre as pessoas. Com o egoísmo empedernido do "sujeito de direito", que encontra no próximo um obstáculo a sua liberdade, e não a realização dela.

Não podendo conter o pranto, o repórter deu as costas à câmera e deu vazão às suas lágrimas. Isolou-se, fugiu da exposição, como se fizesse algo embaraçoso. Mas não há nada do que se envergonhar. Ao contrário: foi belíssimo, esplêndido. Abençoadas sejam cada uma daquelas lágrimas. Elas nos trazem a sensação de que "nem tudo está perdido", de que a infelicidade de uma pessoa pode tocar diretamente o coração da outra.

Aquele repórter não esbravejou contra a tirania da especulação imobiliária, contra o despotismo terrorista do governo estadual e contra a omissão criminosa e covarde do governo federal. Ele simplesmente chorou. Não ficou com os olhos marejados, como se diz. Não deixou uma lágrima escapulir pelo canto do olho. Chorou mesmo. Veio do peito. Deve ter sentido aquela compressão desagradável no peito que sentimos quando a dor de uma emoção vence nossos mecanismos psíquicos de resistência.

Aquele ser humano, que honrou sua espécie naquele memorável instante, não invocou a necessidade de superação das classes sociais. Ele "apenas" chorou ao ver uma criança recém-convertida a indigente. Numa palavra: compaixão. Virtude sublime num domínio de trevas. Angelical, na filosofia cristã. É o bastante para mudar o mundo? Não. Mas é um começo, suponho. Se ela angariar mais adeptos, talvez a noção corrente de que dinheiro, terra e sentenças valem mais do que gente perca algum espaço, aliviando um pouco o fardo do capital e fortalecendo a luta por horizontes decentes, que sinalizem para a emancipação.

Obrigado pelo seu choro, caro amigo. Que ele ajude a descoisificar quem perdeu sua humanidade ao culpar o miserável por sua miséria. Agradeço pelo bálsamo que sua sensibilidade me proporcionou.

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