terça-feira, 18 de junho de 2013

Um necessário balanço de uma dia inesquecível

Ontem foi inesquecível. São Paulo conheceu um dia memorável, assim como outras importantes capitais do país. A inércia foi rompida e as massas deram uma pequena demonstração do seu poder. Todavia, cumpre não se deixar inebriar pela euforia e esboçar uma avaliação do que se passou, sendo que pretendo fazê-lo casando elementos que presenciei com uma análise mais geral de conjuntura.
Comecemos pelos elementos positivos. O primeiro, sem dúvida, foi a ausência de ataques policiais ao longo do percurso. É de se imaginar que a repercussão negativa das agressões da PM na quinta passada deixaram os governos estadual e municipal numa situação consideravelmente desconfortável, tornando a dispersão violenta uma medida muito arriscada. Decerto que isto seria como tentar apagar um incêndio com querosene, e nossos governantes são politicamente hábeis o bastante para não cometer um erro tão crasso. Já devem, aliás, estar amargamente arrependidos de terem convocado a tropa de choque na quinta-feira. Em adendo, os números eram assombrosos, remetendo a movimentos históricos como o Fora Collor, o que muda tudo. Reprimir tanta gente não é uma tarefa fácil, tampouco prudente numa conjuntura em que a violência policial só fez catalisar o processo em curso. Uma ação nitidamente intimidatória surtiu um efeito contrário, tal como na Turquia e mesmo nas revoluções árabes. Já não eram manifestantes simplesmente. Eram as massas se espreguiçando, e isto não é nada desprezível, insista-se. Quando isto ocorre, nada garante que as forças repressivas, mesmo que a população esteja desarmada. O poder do número joga um papel formidável nestas situações.
Outro fato interessante foi a receptividade da população. Não testemunhei nenhuma hostilidade dos transeuntes, passageiros e motoristas contra a passeata. Até ouvi algumas poucas críticas no final da passeata, e que se voltavam para as dificuldades de circulação. Mas todas elas serenas e educadas, nada de histeria. Muito mais presentes, inclusive, foram as manifestações de apoio. Diversas pessoas que passavam de carro saudaram a manifestação; a imensa maioria dos transeuntes recebia os panfletos distribuídos, sendo que alguns paravam para conversar e expressavam seu apoio à causa; nos ônibus, os passageiros abriam a janela e estendiam os braços para pegar ps panfletos; trabalhadores em obras na calçada interromperam seu serviço para dar seus cumprimentos e incentivar a luta.
Por último, é fundamental ressaltar o significado de um movimento forte como este às vésperas dos grandes eventos esportivos e logo depois de o PT lançar sua cartilha enaltecendo o suporto "decênio glorioso" que teria promovido no Brasil. Está claro, mais do que nunca, que as medidas paliativas do governo federal não lograram suprimir as contradições que perpassam a sociedade; que a vida no Brasil não vai bem para a maioria, ao contrário do que propagandeiam os corifeus do governismo; que a melhor posição do país no ranking dos PIBs, ao se mostrar desacompanhada dos indicadores sociais (e em nítido contraste, diga-se de passagem), não é capaz de conter a insatisfação popular; que as águas da transformação, represadas pelas ilusões no sufrágio e pela descrença do povo em suas próprias forças, finalmente começam a encontrar brechas e ameaçam por abaixo, quem sabe, o dique inteiro, caso os governantes de plantão não consigam preservar a estrutura.
Agora, os elementos negativos. O principal foi, sem dúvida, o discurso antipartido. Tenho absoluta certeza de que vários manifestantes cantaram muito mais "sem partido" do que "R$ 3,20 é um assalto". Parece que não se localizaram, que não se deram conta de que se tratava de um ato contra o aumento das passagens, e não de um ato contra os partidos. Esta lamentável ocorrência merece uma análise acurada.
De início, é importante perceber que as palavras de ódio contra os partidos não brotaram espontaneamente, embora encontrassem eco em diversos setores. Elas partiam, continuamente, dos "cidadãos de bem", dos quais falarei posteriormente. Contudo, os campeões nesta modalidade foram os anarquistas e os provocadores que a polícia certamente infiltrou para explorar as divisões e diferenças no interior do movimento. Os segundos cumpriam o papel desorganizador para o qual foram designados por sua instituição; os primeiros também desorganizavam, mas voluntariamente, sem constar na folha de pagamento do Estado - pelo menos ao que me conste. Crianças mimadas que sofrem de algum complexo relacionado à autoridade, os anarquistas são uma escória de pequeno-burgueses neurastênicos que substituem a polícia na perseguição aos partidos políticos, relembrando os velhos (ou nem tão velhos) tempos da ditadura. São autoritários e hipócritas o bastante para reivindicar toda liberdade para suas ações individuais e combater as organizações que constroem a mobilização desde o começo. Chegou-se ao cúmulo de tentarem arrancar à força as bandeiras partidárias e de se agredir fisicamente um militante que portava uma delas. Simplesmente repugnante. Ao fim e ao cabo, a diferença entre os anarquistas e os policiais, para além da classe social a que pertencem, é a indumentária: enquanto os segundos vestem farda, os primeiros trajam jaquetas caras, mas ainda assim dignas destes outsiders.
Realcei a participação decisiva dos agentes que insuflaram o divisionismo, desviando o foco da passeata, mas seria ingênuo ignorar o real sentimento antipartidário que abraçou o chamado dos anarquistas. Eu o comentarei mais adiante. Por ora, limito-me a dizer que a grande maioria das pessoas que hostilizavam os partidos, quando conversadas, se acalmavam de alguma forma. Poderia não concordar com a legitimidade da presença partidária; no entanto, passavam a tolerá-la e se voltavam para o objeto da manifestação, ao menos até que novas provocações surgissem e assim por diante. Parece-me aqui um problema de classe, e que tem se expressado como uma tentativa de tucanização do movimento - mesmo que sem apresentar explicitamente as cores do PSDB.
Por tucanização, entendo a insistente perspectiva da classe média de reduzir todos os dramas da humanidade à corrupção e à falta de ética na política. É a miopia extrema de quem enxerga o mundo sob o prisma do indivíduo, como se a sociedade fosse uma mera soma de átomos, e não um conjunto de relações sociais que estão para além dos indivíduos. E, mais do que isto, começam a aparecer difusamente, com muito mais peso no facebook do que na materialidade das passeatas, as pautas da classe média. Uma ou outra progressista, algumas conservadoras e muitas reacionárias. Resta saber a razão deste fato.
Primeiramente, é fato que há setores originários da pequeno-burguesia, da camada privilegiada dos assalariados e do alto e médio clero do funcionalismo público nos protestos. Quando seus componentes permanecem à margem da militância política, não é de se admirar que se ponham em marcha trazendo consigo todas as limitações de quem acabou de sair da inércia, e que reproduzam acriticamente as concepções de suas classes sociais. Além disso, por mais que exista um abismo de classes no Brasil, há mazelas que invariavelmente atingem a todos. Excetuando-se quem vai trabalhar de helicóptero, o sistema de tráfego nas grandes cidades, indissociável do serviço de transporte público, afeta tanto os passageiros de ônibus da periferia quanto quem dirige carros importados. No mais, a violência policial, apesar de ser seletiva, cedo ou tarde ultrapassa as fronteiras da periferia pobre, sobretudo quando se tem um Alckmin, perito em truculência, no governo estadual. 
Em segundo lugar, urge compreender a influência externa sobre um fator interno. Como o Estado e suas colaterais destroem um movimento - ou, pondo a questão de outra forma: como preservam o estado de coisas? Há duas opções: pela força bruta ou pela ideologia. Não que uma exclua a outra. Muito ao contrário, elas se complementam, e uma não pode viver sem a outra. Enquanto a PM distribui cacetadas, tiros e bombas, a imprensa divulga uma versão dos fatos que vem para justificar a ação policial. Entretanto, quando não há uma conjuntura favorável para a violência policial, o mecanismo ideológico opera de outra maneira. Passa-se a desmoralizar a manifestação, seja distorcendo seus objetivos, seja favorecendo as tendências internas que podem destruí-lo ou torná-lo admissível para as classes dominantes. Trata-se de uma contratendência que se opõe à tendência histórica de radicalização que é imanente ao movimento de massas, e que se desenvolve à medida que o levante toma conhecimento do tamanho de seu potencial.
É preciso afastar todo tipo de mecanicismo na análise. Dizer que há uma tendência imanente a um processo histórico significa dizer apenas que este impulso terá de medir forças com as contratendências que são igualmente necessárias, e é no terreno da política que se decidirá se a confiança das massas em suas próprias forças prevalecerá sobre os freios sociais, sobre as figuras de inércia.
É evidente que a imprensa, de um modo geral, se relocalizou. Com a cobertura alternativa feita pelos próprios manifestantes sobre as ações policiais e com a opinião pública voltando-se a favor do movimento, já não se pode simplesmente divulgar que tudo não passa de uma catarse coletiva promovida por um bando de baderneiros. O episódio do Datena, impagavelmente grotesco, demonstra que a mídia não é somente manipulação. Ela é também espetáculo. Às vezes, é preciso dar ao espectador o que ele quer, e não o que se quer que ele pense. Daí o espetacular (e patético) giro de 180 graus do referido apresentador, que se colocou favorável à passeata num tom altamente populista. Se o público deseja o protesto, mesmo que "com baderna", que seja. Os capitalistas da comunicação dependem da audiência para enriquecer.
No entanto, não vemos uma mera rendição. Se o movimento encontra respaldo, a mídia o apoiará, mas ao seu modo. Lançará luz sobre os aspectos que lhe interessam, e que são precisamente as pautas da classe média, um setor confuso que não está habituado a ir às ruas e que vomita o senso comum com invencível facilidade. Ora, será um presente maravilhoso para nossas classes dominantes se as manifestações enveredarem para o discurso tradicional contra a corrupção. Isto porque ele carrega consigo uma lógica que desprestigia as organizações, que apela ao cidadão em sua individualidade e rechaça a bagagem dos coletivos. É a lógica da "bandalheira", de que a política corrompe e que somente o indivíduo, desprovido de espaços de militância, poderá conduzir à salvação. E somente uma coisa poderia unir esse oceano de átomos nivelados pela cidadania pura: a nação, ou ainda, a pátria.
Ah, o patriotismo! Nem preciso citar a tradição internacionalista a que me filio. Para Samuel Johnson, o patriotismo é "o último refúgio dos canalhas"; para Oscar Wilde, é "a virtude dos depravados". É o vazio que se presta a justificar as mais completas barbaridades. Não por acaso, é a ele que recorrem as ideologias burguesa e pequeno-burguesa nos períodos de aperto, espalhando este veneno para o conjunto da sociedade. Os morticínios provocados nas duas guerras mundiais e em muitas outras tiveram como veste o palavrório chauvinista, em nome do qual os interesses imperialistas se fizeram impor. No caso de ontem, a pátria se impunha sobre os partidos. Não há diversidade possível, a única bandeira que se queria respeitar era a brasileira. É assim que funciona a lógica do fascismo: o corpo da nação deve estar unido, e não há espaço para nenhum outro tipo de representação que não seja a nacional. Preciso dizer mais sobre o quão desprezível e totalitário é este raciocínio?
No entanto, não surpreende que uma geração desabituada a lutar se agarre numa falaciosa tábua de salvação. Não se poderia esperar que um iniciante tivesse um desempenho de veterano. O que realmente importa é que, enfim, a sociedade experimenta uma convulsão, o que abre oportunidades para se aprofundar as lutas. Que haja engajamento não só contra o aumento da tarifa de ônibus, como também pela melhoria radical dos serviços públicos, pela reforma urbana, contra as opressões etc. Tudo a seu tempo, claro, mas que se caminhe nesta direção - eis o horizonte a se cultivar.
Seria um enorme equívoco desprezar o movimento pelas infelizes participações de setores mais despolitizados, e mesmo conservadores. Decerto que não são eles que conduzem o processo, e estão bem longe disto. Cabe a nós dar-lhes o devido combate político e trazer para as fileiras da transformação todas as pessoas que apresentam disposição para tanto, para que percebam que é somente a mobilização nas ruas  (e não o moralismo farisaico contido nas críticas ocas à corrupção e ao partidos em geral) que pode trazer mudanças efetivas. O que não se deve é empinar o nariz com arrogância e menosprezar as possibilidades oferecidas por uma situação singular. Como dizia Trotksy, temos que mudar o mundo com as pessoas tal como elas existem, com o material humano disponível, e é uma quimera conservadora decretar que um movimento ou nasce maduro ou não serve. Não cedamos a este capricho pequeno-burguês. Convençamos os ativistas honestos e derrotemos os mal-intencionados. Sigamos lutando e extraindo das mobilizações o que elas têm de melhor a ofertar: a confiança de que é possível vencer os governos, e que não devemos esperar que os governantes cedam de bom grado, à moda benfazeja, os avanços sociais. Ao contrário, eles devem ser conquistados, com firmeza e coragem, num embate histórico que traz, em potência e em última análise, o cenário da real emancipação humana.


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