quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Nossa classe média sanguinária

Em 1964, houve o golpe. A classe média aplaudiu. Mais do que isso: antecipou as boas-vindas ao regime militar com suas marchas.

A partir de 1968, o movimento estudantil brasileiro se pôs em ação. Ao longo dos anos 1970, a classe média assistiu ao encarceramento e ao desaparecimento de alguns de seus filhos universitários. Este fato, somado ao declínio do crescimento econômico do país (que se materializava em consumo para esta camada social, e não em distribuição de renda), provocou uma cisão na principal base de sustentação política do regime. Com a recuperação do movimento operário nos anos 1980, a queda da ditadura era apenas uma questão de tempo.

Depois do último suspiro da ditadura, a classe média converteu-se em bloco ao credo democrático, salvo algumas pessoas mais renitentes e saudosistas. Juristas, jornalistas e figuras políticas de destaque celebraram a ruína do regime que louvaram durante anos, como se ansiassem pela redemocratização por décadas em silêncio forçado. Nada mais patético. 

Não que isto tenha apagado o ranço de uma classe média enamorada pela ideia de um Estado policialesco. E que não haja dúvidas: nossa classe média não anseia apenas por ordem. Para além de querer preservar a "ordem" (uma entidade mística, que aceita quase qualquer conteúdo), o que se espera é que quem atente contra ela receba a dose de sofrimento a que faz jus. Veja-se: não se trata da busca por uma violência dissuasiva, atrelada a um objetivo supostamente racional. A violência buscada é essencialmente expiatória e vingativa. A dor do ato repressivo não vem para "educar" condutas (supondo-se que a brutalidade do Estado possa servir para isto), mas sim para promover uma purgação autojustificada, que se desdobra num sádico deleite para quem clama por ela.

Este padrão é observável em todas as instâncias em que a força bruta estatal se faz presente. Que pensar da concepção de nossa classe média sobre o sistema carcerário brasileiro? O que a mais limitada das ONGs chamaria de uma calamidade social, nossos pequeno-burgueses qualificariam como mordomia. Eles lastimam as condições de vida dos presos, não por qualquer sentimento humanitário, mas precisamente por entendê-las como insuficientemente vis e precárias.

O mesmo raciocínio vale para a violência policial, com a diferença de que existe aí um elemento importante. A Polícia Militar é uma das reminiscências da ditadura militar. O sistema carcerário atual também é herdeiro do período, vale dizer, mas a PM demonstra mais cabalmente suas origens. Nossa Polícia mata mais que a dos EUA, o que por si só já é um enorme feito. E para além das estatísticas, cumpre analisar o modo de abordagem. O policial militar normalmente aborda os cidadãos com palavras agressivas e com a arma em punho (se o leitor vive em alguma bolha de conforto e alto consumo da cidade, provavelmente não saberá do que falo), comportando-se como um soldado de alguma força estrangeira de ocupação. Além disso, nossa PM detém um conhecimento científico sobre a anotomia humana de dar inveja. Sabe bem como instigar as dores mais lancinantes no corpo humano sem deixar vestígios.

No caso da Tropa de Choque (que manda lembranças ao franciscano médio), isto é ainda pior. A Tropa de Choque é uma escola de violência em que o agente da repressão é constituído enquanto tal. Os treinamentos desta instituição servem para despir os soldados de qualquer sentimento que possa afastá-lo de seu dever. Cada soldado deve estar pronto para agredir, torturar e matar com naturalidade. Aquela foto que circula na internet de um policial disparando um spray de pimenta contra o rosto de uma criança negra retrata bem esta lógica de "dessensibilização".
O objetivo desta preparação é separar o policial de sua comunidade e, acima de tudo, de sua classe. A história das revoluções é a história da rebelião dos estratos inferiores do aparato policial e militar, e esta rebelião se deve a um processo de reconhecimento. Quando os soldados reconhecem nos reprimidos seus irmãos de classe subalterna, não há general que possa manter a disciplina da tropa. Os levantes no mundo árabe indicam que a insistência deste sentimento de solidariedade de classe (ou mesmo de um mínimo de humanitarismo, em algumas ocasiões) pode dilapidar as bases de um regime político, por mais tirânico que ele seja. Muitos pilotos da força aérea de Kadafi, mesmo de dentro de suas assépticas maquinas de matar, simplesmente não puderam se render à insanidade da tarefa que lhes fora passada, qual seja, bombardear a população.

Para se ter um corpo repressor digno deste nome, é preciso afastar qualquer ímpeto humano de misericódia em seus agentes. É preciso ser capaz de tudo. É preciso superar em ferocidade os cães da policia e até mesmo os "elementos subversivos" que se combate. Eis aí a filosofia que orienta esta instituição tão amada pela classe média. E quanto mais desumana ela é (e portanto, mais eficaz nos seus propósitos), maior é o amor. O que nossos pequeno-burgueses de São Paulo não dariam por um Bope paulista? Decerto que se lamentam pela "brandura" dos métodos de nossa polícia. E decerto também que torceram ardorosamente para que os ocupantes da USP fossem agredidos, trancafiados e tratados sem nenhuma daquelas perfumarias chamadas de direitos humanos.

Um detalhe importante: se a classe média idolatra a ferocidade inerente às forças policiais, não há dúvidas de que dela partilha, e sem a necessidade de um treinamento militar. Como poderia operar-se tamanha bestificação? Pelo discurso da grande imprensa? Se admitirmos que a questão se resume a este ponto, então só poderíamos estar diante de um caso singular de estupidez coletiva, ou de uma lavagem cerebral massiva. Receio que a realidade seja mais complexa do que isto. Os aparelhos ideológicos, com efeito, são muito poderosos. Todavia, as condições em que podem ser mais ou menos bem-sucedidos dependem da objetividade material da sociedade.

A classe média é uma espécie de refugo da luta de classes. Não se encaixa adequadamente nem no campo da burguesia e nem no campo da classe trabalhadora. Trata-se de uma massa amorfa que engloba a maior parte dos funcionários públicos, profissionais liberais e pequenos proprietários. Por ser uma classe "residual", sua compleição é demasiado heterogênea. Além disso, sua identidade é estabelecida, prioritariamente, pelo nível de vida e de consumo, e não pela posição que ocupa na produção capitalista.

Esta composição social é fonte de um notável conservadorismo. A classe média representa, ao mesmo tempo, um setor mais "confortável" da classe trabalhadora e um setor mais frágil e inseguro da burguesia. Assim, diferentemente do que ocorre com o proletariado, a classe média é capaz de visualizar a possibilidade de ascensão social. Mesmo que seja difícil que um pequeno-burguês seja promovido a burguês, fato é que não é nada incomum que indivíduos de "classe média baixa" atinjam, um dia, o posto de "classe média alta". E diferentemente do que ocorre com a burguesia, a classe média é capaz de visualizar a possibilidade de regressão social. Aliás, a dinâmica monopolista do capitalismo conspira permanentemente para este resultado. Daí uma situação de risco que leva às maiores exasperações em momentos de possível guinada nos rumos da sociedade. O medo de Regina Duarte, hoje comprovadamente desfundamentado, não nos deixa dúvidas.

A ascensão social é o sonho da classe média, é o fator que a põe em movimento. O caminho é o consumo. A aquisição da casa própria, do carro e de mil e uma bugingangas da atualidade é um itinerário necessário para seus membros. Enquanto os trabalhadores comuns buscam no trabalho, via de regra, a garantia de oportunidades melhores para os filhos e netos (ou o pão dos próximos dias, no caso das camadas mais exploradas e precarizadas), os pequeno-burgueses estão sempre ambicionando novas conquistas para sua própria geração, cabendo às próximas nada mais do que dar continuidade ao movimento. Depois da casa própria, vem a casa na praia. Em seguida, o segundo carro da família, ou uma troca periódica de veículos. E por aí vamos.

Uma vez que a classe média é movida por um padrão de consumo que se pretende crescente (ascensão social), daí se tem que seu humor político varia conforme o desempenho da economia do país. Surtos de crescimento implicam políticas generosas de crédito para o consumidor, o que significa novos celulares, novas viagens etc. E se o dólar fizer o favor de se desvalorizar, então nossa classe média poderá conhecer o mundo mágico da Disney, o glamour da Big Apple e a cafonice de Las Vegas. As saudades do período FHC não são nada casuais.

Atualmente, o país cresce pouco. O crédito para o consumidor continua disponível, mas os juros são de arrepiar. Não que esta situação leve a classe média a se opor ao rentismo financeiro. Longe disto! A culpa de todas as mazelas, em sua limitada imaginação, é do Fisco-Leviatã. Nossos pequeno-burgueses simplesmente não percebem que seus problemas se devem à espoliação do orçamento público pelas camadas rentistas e ao arrocho salarial persistente que vige no país. Não percebem que a deficiência dos serviços públicos prejudica-lhes quase tanto como aos trabalhadores, e que os capitalistas são, para eles, uma imagem no espelho que, por mais que procurem, jamais encontram. A burguesia deste país sequer suspeita do que vem a ser, por exemplo, a realidade do transporte público.

Sufocada nas suas dívidas, a classe média muda de semblante. Começa a se enfurecer. E no ápice dos seus instantes de ódio, precisa encontrar um Judas para malhar. O boneco malhado muda conforme a conjuntura, sendo que, agora, os estudantes da USP são a bola da vez. No brilhante e nada simplificador raciocínio pequeno-burguês, o Brasil desperdiça suas potencialidades com alunos que ocupam prédios públicos em nome do direito de fumar maconha. A este patamar chega o farisaísmo para sintetizar o que se passa.

Em cada espasmo de ódio, encontramos a aflição de um estrato que caminha em direção à burguesia da mesma forma que um homem caminha em direção ao sol postado no horizonte. O mesmo estrato que se encontra sob constante ameaça de proletarização. É neste terreno de insegurança que a verborragia midiática encontra adeptos fanáticos, prontos para entregar seu discernimento em troca de garantia da inércia social.

A classe média é, ao fim e ao cabo, uma criança assustada que se agarra ao primeiro suporte que encontra. Numa sociedade marcada por um abismo entre as classes sociais, por uma segregação radical que, mediante uma mínima tensão em sentido contrário, pode desencadear conflitos intensos, virando tudo do avesso de repente. O Estado policialesco aparece aí como um consolo e um anteparo. Seu poder de conservação atua como bálsamo salvador. E depois do alívio, vem o deleite. O filisteu experimenta um prazer inenarrável, num mórbido erotismo, ao pronunciar expressões como "descer o porrete". O gozo que o acomete é tamanho que sequer lhe é possível esboçar um ar de civilidade para fingir que vê o ato repressivo como uma espécie de "mal necessário".

Ainda assim, nossa classe média é cristã. O pecado do vício e da desobediência exige punição e vingança. Seus valores cristãos não lhe parecem nada incoerentes com o discurso do "descer o porrete". Lamentavelmente, um observador incauto como eu poderia desconfiar desta aproximação. Eu poderia me perguntar sobre o lugar que o amor, o perdão e a tolerância ocupam nesta singular concepção. Mas provavelmente não há motivos para inquietação. Afinal, Jesus disse que quem ferir pela espada tombará pela espada. Felizmente, nossa Tropa de Choque utiliza armas que não se enquadram na reprovação moral anunciada pelo pacífico nazareno.

Não, por favor... perdoem-me pela ironia. Não duvido que os expoentes da classe média se comportem como bons cristãos. Pois se eles desejam o pior para seus "semelhantes", é somente para que estes pecadores, no paroxismo do sofrimento merecido, encontrem a redenção. O porrete, em última instância, vem para conduzir a Cristo, segundo nossos piedosamente mórbidos guardiões da moral.

Evidentemente, nem todos os que se colocam favoráveis à invasão da polícia no campus apresentam traços em que a patologia se revela com tanta nitidez. Alguns poderão até dizer algo como: "Sou a favor da PM, mas espero que ela não extrapole". Ora, esta ingenuidade chega a ser pueril. A Polícia Militar, em verdade, é feita para "extrapolar", e seus expedientes de repressão não são mais do que o exercício da musculatura do Estado enquanto violência concentrada. As comunidades pobres que o digam.

Já me alonguei bastante. Gostaria de encerrar fazendo menção a um problema teórico. Alguns pensadores brasileiros lançaram-se à tarefa de refletir sobre o que havia restado da ditadura no Brasil. Indicaram, nesta empreitada, diversos dispositivos institucionais, e mesmo legais. Cumpre acrescentar, no entanto, que a principal reminiscência do regime militar, hodiernamente, é a sua base social. Se quisermos saber como uma sociedade pode se ver entregue a forças despóticas, ou seja, como algo de tão terrível pode acontecer sem que alguma resistência efetiva consiga se impor, basta conferirmos o que se passa em redes sociais como o facebook. Há todo um número expressivo de pessoas que estão devidamente preparadas para servir de suporte político para os mais inimagináveis retrocessos neste arremedo de democracia em que vivemos. A maioria delas, certamente, jura de pé junto que se insurgiria contra o golpe em 1964...

Quem são essas pessoas? Como podemos chamar esses pequeno-burgueses enraivecidos, cuja referência moral é o Capitão Nascimento? Caso perguntássemos a um deles por seu nome, talvez ele parafraseasse a bíblia, dizendo: "Meu nome é legião, porque somos muitos". O bastante para nos preocuparmos.

sábado, 5 de novembro de 2011

A Segunda Grande Revelação do Relativismo

Segunda Grande Revelação: não existe luta do bem contra o mal

O conservador disfarçado de relativista, ao envolver-sr em discussões com a esquerda, utiliza um aparelho retórico muito particular. Poderíamos chamá-lo de "maniqueímetro". Toda vez que um militante de esquerda defende seu ponto de vista com confiança e comprometimento, expondo as consequências de cada alinhamento na política (ou seja, as implicações da tomada de partido num dado conflito), o mencionado dispositivo começa a apitar, fazendo um verdadeiro escarcéu.

Se digo, ilustrativamente, que a sociedade está dividida em exploradores e explorados, o maniqueímetro imediatamente se colocará em funcionamento. Falar em exploradores e explorados, para o conservador-relativista, significa falar numa luta entre o bem e o mal. Então, deleitando-se com a própria sagacidade, este direitista apontará a impossibilidade desta dicotomia na política, pois bem e mal são conceitos relativos.

O grande artifício conservador está em deslocar uma questão política (no nosso exemplo, o conflito de classes) para o âmbito moral, este domínio fluido onde quase tudo é possível. Nada mais conveniente, pois o alinhamento com os interesses materiais da sociedade, objetivamente operantes, acaba sendo coberto por um véu ideológico. O antagonismo entre interesses em choque é apresentado como mera divergência de opiniões, como simples diferença de perspectivas. E se tudo não passa de uma questão de ponto de vista, então entramos no confortável reino do "tanto faz".

Para desmentir esta insustentável concepção, basta que nos reportemos à base material de todo e qualquer debate político. Independentemente do que se entenda por bem ou mal, todos os dias um enorme contingente humano produz a riqueza social por seu trabalho, e todos os dias uma pequena camada da população se apropria, sem trabalhar, da maior parte desta riqueza, ainda que por diferentes formas (lucro, renda, dividendos, juros etc.). O nome deste fenômeno é exploração, ou, se preferirmos usar um sinônimo mais ameno, extração do produto social excedente. Se isto é bom ou mau, justo ou injusto, pouco importa para a realidade.

A esta altura, algum desventurado leitor relativista haverá de nos constranger com seu maniqueímetro, pois a simples referência a um evento tão maniqueísta como a exploração seria uma prática inaceitável de minha parte. Estou disposto a reconsiderar, mas com uma condição: que este interlocutor me demonstre como lucro, renda, dividendos e juros representam a contrapartida de uma atividade verdadeiramente produtiva desempenhada pelas personificações do capital. Caso não consiga fazê-lo, só lhe restará tentar provar que as citadas formas de rendimento não repousam sobre o mundo do trabalho, sendo antes resultado da materialização do éter...

Tem-se, pois, que o primeiro passo para uma discussão política séria é reconhecer a objetividade dos fatos. A exploração, assim como o machismo, o racismo e a homofobia, são dados da realidade. Negar isto é supor um mundo imaginário, sem nenhum tipo de violência real. É como se todos os problemas da humanidade decorressem de falsas ideias sobre sua situação, e não sobre a sua situação em si. Há um número aterrador de pessoas que acreditam que o mundo seria melhor se seus habitantes pensassem que ele é melhor. Lutar contra a espoliação e a tirania que assolam o mundo seria apenas "inventar" a espoliação e a tirania!

Mas por que nossos conservadores se portam assim? Por qual motivo insistem em tratar antagonismos políticos como uma questão de moral e em se referir a noções como exploração e opressão como se fossem paranóicas ou caprichosamente divisionistas? Simples: negar o conflito é a alma do negócio. Mais do que distorcer a realidade, é preciso que a distorção ideológica seja capaz de sugerir que uma sociedade como a nossa é composta por interesses convergentes, e que as oposições que se verificam são parciais e marginais. E para deslegitimar os discursos que reivindicam o antagonismo, nada como "infantilizá-los", ou seja, tratá-los como se fossem lastreados numa concepção simplista e transcendente, como se não espelhassem nenhum conflito material.

A negação do conflito, em verdade, é a negação da própria política, que nasce precisamente da movimentação de sujeitos cujos interesses estão objetivamente contrapostos (por exemplo: a extração do trabalho excedente funda o antagonismo entre as classes, independentemente da vontade individual de seus membros). A negação da política, por sua vez, é a receita da inércia dos dominados, é o caminho da prostração, da derrota sem combate. A grande ofensiva do capital contra o trabalho nas últimas décadas, conhecida como neoliberalismo, foi baseada na ideia, ainda que não proclamada deste modo, do fim da política. O capitalismo, depois da derrocada do bloco soviético, foi promovido ideologicamente. De modelo de sociedade passível de discussão, foi transformado em força da natureza. E a natureza, como se sabe, não pode ser "superada", mas apenas "administrada" dentro de limites.
Tanto é assim que, hodiernamente, o "uso político" da taxa de juros (este instrumento de política econômica tão débil quanto fetichizado) é motivo de escândalo. Um governo não deve definir objetivos para um elemento da natureza, como é o caso da taxa de juros. Resta-lhe apenas "compreender" qual é a vontade do mercado, isto é, extrair de suas manifestações um sentido a se seguir. "Quo vades, domine"!.  Que terrível destino aguarda um país que não conta com profissionais suficientemente qualificados para realizar a intelecção dos desígnios do Des-mercado! Prioridades políticas? Blasfêmia! Tudo não passe de uma questão de técnica, tudo se resume a qualidades e deficiências inocentemente técnicas e administrativas.

Que pensar do enxuto linguajar "político" dos dias de hoje? Contra a delirante visão marxista da luta de classes, o que temos é uma "sociedade civil" cada vez mais "heterogênea" e "complexa". Há vários "atores" em constante interação, perfazendo um ambiente "pluralista". Nosso desafio é fazer com que estes atores se percebam como "parceiros sociais", promovendo o espetáculo da concertação, e tudo sem prejuízo das "identidades". Como? Pelo "diálogo", fonte da redenção eterna via "produção de consensos". Pronto! Já está pavimentado o caminho da "cidadania". E enquanto estas belas palavras, nada conflitivas, são repetidas ad nauseam no repertório dos partidos da ordem (quase coloco no singular), das ONGs (tanto das sérias quanto das mal-intencionadas) e do sindicalismo pelego, a vida segue: a mais-valia flui para os bolsos dos capitalistas, as mulheres são coisificadas pelo capital, os LGBTTs se vêem alijados de conquistas mínimas que marcaram a civilização burguesa etc. Aliás, todas as vitórias obtidas pelo movimento neoliberal foram formuladas nos termos que coloquei em destaque.

Contra este estado de coisas, impõe-se a refundação da política pela lógica do conflito, pelo embate entre os inconciliáveis. Que os dominados encarem de frente os dominantes, que venha a polarização. E quanto à luta do bem contra o mal? Depois que nossos conservadores assumirem os interesses que defendem e representam, teremos prazer em concordar com eles quanto à tese de que "bem" e "mal" são "relativos", já que a axiologia dos dominados não é a mesma que a dos dominantes.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A Primeira Grande Revelação do Relativismo

Começo com um truísmo: todo(a) militante de esquerda que atua em algum ambiente hegemonizado pelo direitismo já foi acusado(a), pelo menos uma vez, de ser autoritário(a). E o que consta na peça de acusação? Três sórdidos e terríveis crimes: comportar-se como "dono(a)" da verdade, ser maniqueísta e pretender monopolizar o bem para si. Esta malévola tríade delitiva resumiria a vida criminosa do(a) esquerdista, perfazendo uma conduta tipicamente despótica, voltada para esmagar as opiniões em sentido contrário. 

Parece não haver sinal maior de menosprezo pelos mais elevados valores. Esses esquerdistas atentam contra um tesouro inestimável! E quem haverá de denunciá-los? Os conservadores, certamente. Porém, ao agirem assim, cobrem-se de um verniz relativista, muito em voga nos dias de hoje. Quando debatem com a esquerda, esses direitistas não hesitam em invocar uma "questão de ordem". Evitando o aprofundamento no mérito das discussões, tratam de se insurgir contra a postura supostamente autoritária de seus adversários. E fazem-no apresentando as Três Grandes Revelações do Relativismo para a humanidade. Falarei de cada uma destas inestimáveis contribuições para o progresso do conhecimento e da própria civilização. Hoje, veremos a primeira.

Primeira Grande Revelação: ninguém é dono da verdade

A frase "ninguém é dono da verdade", que poderíamos definir como "pouco original", brota das bocas relativistas (e conservadoras) com uma singular facilidade. Aqueles(as) que a pronunciam parecem experimentar um prazer inenarrável no instante do ato. Quisera eu me deliciar tanto com tão poucas palavras! E mais: nossos relativistas anunciam essa máxima com o mesmo ar de triunfo que um gênio da ciência expressa ao se deslumbrar com uma descoberta revolucionária. Eles se vêem diante de algo que julgam um legítimo aforismo, um lampejo de lucidez e perspicácia condensado na brevidade de uma pequena e moderada sentença.

O que leva um relativista a proclamar tão jubilosamente que "ninguém é dono da verdade"? Teríamos aí uma reflexão sobre o sistema filosófico kantiano, sobre a separação radical entre sujeito e objeto no mundo do conhecimento, resultando numa impossibilidade de plena cognição da realidade? Não, o relativista-conservador não chega a este nível de sofisticação, de sorte que sequer é preciso invocar a reconciliação dialética entre sujeito e objeto promovida por Hegel. Só o que temos é a módica e miserável fórmula segundo a qual o que é verdade para alguém pode não ser verdade para outrem.

É preciso reconhecer que, do ponto de vista filosófico, esta proposição não é inteiramente desprezível. Do ponto de vista político, no entanto, ela nos conduz a uma só pergunta: e daí? A filosofia, com efeito, pode dar-se ao luxo de especular sobre a verdade. Na política, diferentemente, esta especulação não faz sentido.

Deve-se ter claro o seguinte: o terreno da política é o terreno dos interesses, os quais se encontram frequentemente em conflito. As ideias e valores não fazem mais do que reproduzir a objetividade e as contradições dos interesses materiais colocados na sociedade, e é por isso que a questão da verdade remonta à práxis social e histórica. Se por um lado o verdadeiro não pode ser concebido como uma categoria transcendente e absoluta, nem por isso há de se falar numa indeterminação abstrata. O verdadeiro é, antes de tudo, produto de um processo histórico de construção permanente, é um movimento condicionado ao devir social. Eis uma noção que os relativistas, antidialéticos que são, não conseguem compreender.

Na perspectiva relativista, a verdade é múltipla e fragmentária, acompanhando a multiplicidade dos sujeitos. E é precisamente aí que se encontra toda a sua fragilidade. Um esquema teórico lastreado numa pulverização tendente ao infinito ignora que os processos pelos quais se cristalizam as visões de mundo transcendem a dimensão do indivíduo, sendo que o mesmo raciocínio vale, por exemplo, para elementos estéticos, códigos de linguagem e outros itens da cultura. Não se deve olvidar que é no interior de totalidade social, organizada e estruturada segundo a produção material da vida, que o mundo da cultura se desenvolve. Ora, quando se constata que o universo da produção material da vida é um espaço de cisão e de violento antagonismo (pelo menos tem sido assim até agora), há de se admitir que os interesses das classes antagônicas colocam critérios de verdade em conflito, sendo que a prevalência do que socialmente se toma por verdade (ou seja, a concepção que se impôs por uma luta de natureza política) depende dos rumos e do desfecho desse conflito.

Vale acrescentar ainda que o método relativista reproduz o individualismo metodológico liberal, consistindo numa reciclagem das "robinsonadas" da economia clássica, das quais Marx tanto se ocupou para lhes dar combate teórico. Ainda que em alguns casos o relativismo admita a existência de sujeitos coletivos, falta-lhe um eixo de hierarquização ontológica. As esferas sociais que concebe estão todas niveladas a priori, não há elementos ou critérios de preponderância ou dominância. É o reino do acaso: os eventos históricos, em tal perspectiva, não portam causas inteligíveis, sendo antes o resultado de uma cadeia de causalidade essencialmente aleatória e, portanto, incognoscível.

Por esse problema de método, o relativismo prostra-se diante das "grandes narrativas", limitando-se ao medíocre horizonte da parcialidade e da subjetividade. Ao se esquivar da tarefa de pensar a totalidade organizada, condição prévia para se enfrentar as questões-chave que a humanidade se propõe, esta maneira de pensar deixa de perceber que a parcialidade e a subjetividade não são mais do que mediações numa estrutura totalizante. Não se trata de negar a individualidade da parte em face da imensidão do todo e do poder organizativo de suas bases, e sim de se conceber cada individualidade como um concreto, e um concreto formado por diversas determinações, uma resultante de tendências contraditórias e contrastantes.

Seria prudente se nossos direitistas-relativistas ao menos parassem para refletir sobre considerações como essas. Ao invés disso, eles seguem com seu discurso superficial, que imediatamente leva a novas demonstrações de farisaísmo, como invocar o tom "autoritário" de quem se atrever a questionar a visão relativista sobre a categoria "verdade". Vale lembrar que, em tempos de discurso pós-moderno, o maior dos pecados é ter certezas políticas. O mal está em utilizá-las para o combate político: é como se tentar convencer o outro de algo em que se crê representasse uma afronta à inteligência do interpelado! Em contraste com tamanha ignomínia, o conservador prefere a inércia política, muito mais confortável e "democrática".

Aqui, mais do que nunca, prevalece a objetividade do interesse. O conservadorismo não é mais do que a expressão ideológica das forças materiais de inércia da sociedade; poderíamos defini-lo como o idioma das estruturas de reprodução social, e é por isso que o direitista típico só se escandaliza com a firmeza das intervenções da esquerda. A inabalável convicção conservadora no mercado e no capital nunca é questionada. O que se questiona é a suposta obtusidade dos militantes que insistem em se referir a um fenômeno chamado luta de classes, ou das feministas, que pretendem despojar os homens do sagrado direito de ver as mulheres como um objeto. Apenas as certezas contestadoras e subversivas são anatematizadas pelo repertório relativista.

Pois bem, ocorre que negar legitimidade às convicções políticas (ainda que de modo contraditório e insustentável, como fazem os conservadores) significa recusar-se em pensar os grandes temas, as questões-chave da humanidade. No domínio dos interesses (campo político), esta postura caracteriza uma fuga dos embates mais necessários, coisa que os explorados e oprimidos não podem se dar ao luxo de fazer. É preciso lutar, e lutar pressupõe certezas sobre as pautas que se encampa. Seria isto vergonhoso?

Para encerrar, uma ponderação. Se João Cabral de Melo Neto nos lembra que não se defende a vida só com palavras, caberia acrescentar: e muito menos com meias palavras. A relevância de um assunto político exige comprometimento e mesmo intransigência com relação a determinados princípios. Estar disposto a abrir mão de valores mínimos em defesa de uma suposta conduta "dialógica" e "democrática" é conduta própria de espíritos pusilânimes, que encontram na frouxidão de caráter uma estranha fonte de regojizo. Lutar pela transformação social implica agarrar-se pela raiz aos interesses dos setores espoliados e, portanto, à verdade dos espoliados, ao seu ponto de vista crítico e revolucionário. A reflexão e a autocrítica são sempre necessárias, mas cumpre escolher bem sob qual ponto de vista elas serão feitas. Não se pode prescindir de confiança na justeza da causa que se abraça, tampouco confiar nelas pela metade. Entregar-se à luta é entregar-se por inteiro, é sentir no oprimido a dor imposta pela violência que o constitui enquanto oprimido, é cerrar fileiras ao seu lado até as últimas consequências. Nossos relativistas, na qualidade de indivíduos prudentes e de mente aberta, não correrão o risco de errar, de se aventurar numa empreitada de engajamento, que seria uma reprovável tentativa de imposição de uma verdade. Mas se este modus operandi não altera o estado de coisas, servindo apenas de lamúrio em face das forças reais de transformação, então o seu respeito pela "verdade" de cada um se converte em respeito pela inércia da sociedade, pela manutenção do que está dado. Eis porque a superação do horizonte relativista é o primeiro passo para a superação do diletantismo improfícuo, este estado de pureza que, em sua ilusória pretensão de se postar acima dos conflitos mundanos, revela-se como elemento de reiteração da realidade que os engendra.

domingo, 16 de outubro de 2011

A Marcha da Família Franciscana pela Liberdade

Nunca pensei que, depois de formado, escreveria sobre questões pertinentes à política acadêmica da FDUSP. No entanto, em virtude do fato de cursar pós-graduação naquele lugar, acabei tomando contato com um fenômeno que simplesmente me obriga a falar. Eu o batizei, carinhosamente, de "Marcha da Família Franciscana pela Liberdade".

Para os(as) que não são do meio, felizardos(as) em inúmeros aspectos, convém fazer uma rápida introdução. Dentre as diversas tradições da "Facvldade" (sic) de Direito do Largo de São Francisco (também conhecida como FDUSP), existe uma chamada "Peruada". Oficialmente, trata-se de uma manifestação política promovida pelos alunos(as) da faculdade no centro de São Paulo sobre algum tema relevante, sendo que essa manifestação é caracterizada por sua irreverência (ridendo castigat mores). E como forma de instigar esta irreverência, nada melhor do que o álcool como meio de despertar a alegria e a desinibição, numa espécie de realização empírca dos louvores de Charles Baudelaire ao vinho (vide o seu "Paraísos artificiais").

Na prática, trata-se de uma simples micareta pelo centro. E que me entendam bem: pouco me importa que o tráfego seja paralisado por conta de uma festa pequeno-burguesa. Não sou desses românticos apaixonados pela circulação, nem desses beatos que demonizam as alegrias e prazeres dionísicos (embora deva reconhecer que eles não me cativam). Só o que acho é que os(as) "franciscanos(as)" (refiro-me aos estudantes, e não aos membros da ordem religiosa) deveriam reconhecer aos verdadeiros manifestantes, ou seja, àqueles(as) que verdadeiramente estão engajados numa causa política, o direito de fazerem o mesmo. Chega a ser um enfadonho cliché a imagem do estudante do Largo escandalizado por passeatas de movimentos sociais que interferem na liberdade de ir e vir dos cidadãos. É claro que esta objeção não se aplica, na medíocre mentalidade deste indivíduo igualmente medíocre, à Peruada. Afinal, a Peruada é uma tradição, e não uma tradição qualquer. Ela é, para além do momento de catarse dos comportamentos que os franciscanos cotidianamente vedam a si próprios em função de seu cínico moralismo, o paroxismo da ideologia franciscana. Veremos como opera este mecanismo ideológico mais adiante.

O que me chama a atenção agora, evidentemente, não é a realização da festa, que ocorre todos os anos, e sim o movimento de várias pessoas contra a política da gestão do C.A. de não utilizar passistas "mulatas" no evento. Na esteira de seu tom carnavalesco, a Peruada sempre contou (ao que me consta) com a presença de mulheres negras e belas seminuas. Desta vez, houve um veto a esta prática, sob a correta argumentação de que é preciso combater os mecanismos de reprodução de estereótipos racistas e machistas. Tais qualificativos, vale dizer, são merecidos por projetarem uma imagem coisificada da mulher negra, como se seu grande papel fosse servir de objeto de adoração erótica. Não obstante, isto não remediou o indizível mal-estar causado em muita gente. Ao contrário, o que se viu foi que este mal-estar se materializou no que chamei de "Marcha da Família Franciscana pela Liberdade", e tentarei analisar este acontecimento nos marcos da ideologia franciscana que mencionei.

O que vem a ser esta ideologia? Coloquemos da seguinte forma: o franciscano médio (sim, ele existe) acredita piamente que estuda na maior e melhor faculdade de direito do planeta Terra, quiçá do sistema solar. Ele se orgulha de ter sido aprovado num filtro de classe chamado vestibular, que não faz mais do que bulinar seu ego com a volúpia da soberba. O caráter meritocrático e individualista da sociedade burguesa, esta selva de concreto onde reina o cada um por si, fala diretamente ao coração do pequeno-burguês ingressante na FDUSP. Incorrigivelmente galanteadora, a ideologia franciscana seduz o interpelado com um discurso mais ou menos assim: "Você é especial. Você pertence à nata da sociedade. Agora que você penetrou pelos pórticos sagrados deste Templo, tudo lhe é permitido. A você será dado acessar lugares que aos meros mortais não é dado acessar, e tudo graças à marca que você porta".
Esta maneira de pensar não se deve inteiramente ao individualismo inerente à sociedade burguesa. E nem poderia ser, pois a FDUSP nunca foi a vanguarda do pensamento burguês. Esta "Facvldade" traz em si um estranho amálgama entre a racionalidade moderna, burguesa, e o tradicionalismo do Antigo Regime. O resultado é a produção de uma ideologia liberal pela metade, que consagra a guerra de todos contra todos típica do liberalismo, mas que, ao mesmo tempo, mina as bases da igualdade formal, já que não abre mão da lógica do privilégio. A liberdade, neste sentido, torna-se uma liberade liberal atávica. Ela deve ser maximizada, mas somente para os privilegiados da São Francisco, e não para todos. A Peruada é para o franciscano, e para mais ninguém. O "Pindura" é para ele; para os outros, é crime patrimonial.

Eis porque, no imaginário vulgar do franciscano médio, ele estuda na Gloriosa "Facvldade de Direito do Largo de São Francisco", e não na FDUSP. Ele vive num mundo a parte, que não está inserido numa universidade, numa cidade, num país etc. Com isso, as tradições deste espaço tornam-se autorreferenciadas e autossuficientes. No hermetismo radical de seu universo, não se toleram ideias que lhe sejam externas. Daí porque o entendimento de que a política na faculdade obedece a uma lógica própria encontra tanto eco. O pecado imperdoável da gestão e dos setores que se colocam contra a utilização das passistas negras no evento foi profanar um elemento cristalizado na tradição do Largo com um elemento externo, qual seja, a crítica ao machismo e ao racismo.

Estaria eu insinuando que o franciscano médio é racista e machista? Digamos assim: se ele o for, isto acontece apenas pela inércia da sociedade em que está imerso (sem se dar conta), e não por uma convicção consciente. Note-se que estou descartando da análise, piedosamente, o setor obscurantista da faculdade (um protoplasma reacionário que reune de tudo: paulistas separatistas, higienistas sociais, saudosistas do pátrio poder, homofóbicos declarados, fundamentalistas cristãos, fãs do Reinaldo Azevedo e outros). O franciscano médio seria incapaz de defender a tese da inferioridade das mulheres e dos negros. No entanto, ele está pronto para se insurgir furiosamente contra quem atentar contra uma das tradições que tanto idolatra.

Ora, é precisamente por idolatrar as tradições da faculdade que o franciscano médio não está em condições de examiná-las criticamente. Não lhe passa pela cabeça que uma tradição pode estar impregnada de estigmas preconceituosos. Ela é o que é: um dogma, uma ideia autorreferenciada, isto é, que vale por si mesma. Seria necessário dessacralizar o Largo para que o debate sobre machismo e racismo pudesse acontecer plenamente. Enquanto isso não ocorre, o franciscano médio continuará reprovando o assédio sexual no metrô de São Paulo, mas também continuará a se referir às "pucanas" com adjetivos os mais escusos possíveis.

Este chauvinismo franciscano, na minha opinião, é um cordão sanitário que cria zonas ideológicas de isolamento e de exceção. Um estudante mais esclarecido poderá até dizer que o mundo é machista. Todavia, esta categoria não seria aplicável a eventos como a Peruada e os Jogos Jurídicos, por exemplo, pois a "Facvldade" é um mundo particular (até a grafia é particular), com códigos de significação próprios. Mesmo sem o saber, o franciscano é adepto de Luhmann. É como se o sistema "Largo de São Francisco" tivesse uma lógica própria que não se comunica com a lógica dos outros sistemas, como o sistema "realidade social".

Não causa estranheza, pois, que a família franciscana esteja em marcha. O que ela deseja? Liberdade. Liberdade para gozar os prazeres de uma vida mesquinha sem se preocupar com quem habita os porões da sociedade. Liberdade para se deleitar com a sensualização da mulher em detrimento de seus potenciais humanos. Liberdade para ignorar a condição do povo negro. Liberdade, enfim, para usufruir de seus sonhos e fantasias sem ser turbada pela política ou pela ditadura do politicamente correto, que se atreve a questionar sobre sonhos e fantasias usufruidos desde tempos imemoriais. Afinal, denunciar as opressões imediatamente aparece como uma infiltração do sistema "realidade social" no sistema "Largo de São Francisco". Que horror!

Poderão dizer que carrego excessivamente nas minhas tintas; que me refiro a uma caricatura, pois o franciscano médio não é tão alheio ao mundo assim. Entretanto, estou bastante seguro de minha posição, e digo isso porque esta não é a primeira Marcha da Família Franciscana que tive o desprazer de testemunhar. Houve outra, muito mais aguda, em agosto de 2007. Aliás, o faniquito de hoje não é nada comparado ao ataque neurastênico da ocasião.

Explico-me. Em agosto de 2007, ocorreu a "defloração" do Largo por um grupo de movimentos sociais que, numa Jornada Nacional pela Educação, realizou uma ocupação do prédio. O episódio representou, para muitos, a cavalgada dos quatro cavaleiros do apocalipse sobre a Terra. As pequeno-burguesas temiam por suas bolsas. Os pequeno-burgueses temiam por seus celulares de último tipo. Os filhos da grande burguesia, sentindo-se violados, queriam correr daquele cenário tétrico, e logo suspiraram poesia: "Meu reino por uma limousine!". Para eles, inclusive, foi uma apresentação: pela primeira vez viram de perto, ao vivo e a cores, homens e mulheres oriundos das classes esmagadas pelo capitalismo (com exceção das empregadas domésticas e dos porteiros de condomínio, por óbvio).
Mais do que odiar os pobres (o que não era exatamente uma novidade), a família franciscana passou a odiar a gestão do C.A., a qual, sabendo da iminência da ocupação, optou por não divulgá-la, de modo a evitar que o diretor, aprendiz de Mussolini, tomasse medidas para impedir as atividades políticas. No fim das contas, o movimento foi reprimido duramente, e o diretor João Grandino Rodas foi elevado à condição de Salvador da República Franciscana. Com sua tropa de choque, cruzou o Rubicão do "Território Livre" para destruí-lo, e os alunos o amaram por isso. Foi recebido como um herói. Se não lhe estenderam um tapete vermelho, foi apenas por repulsa a uma cor tão subversiva. Só se tornou vilão por conta de umas presepadas com a biblioteca da maior faculdade de direito do sistema solar, quiçá da via láctea. Sou da triste época em que Rodas era Lord Protector, e não Persona non grata.

Pois bem, por qual razão a família franciscana destilou seus sentimentos mais inconfessáveis contra a diretoria do Centro Acadêmico? Porque pouco importa o caráter público da universidade (aliás, que universidade? Só existe "Sanfran"!). Porque a diretoria do XI de Agosto deve viver no mundo hermeticamente fechado do sistema "Largo de São Francisco", não lhe sendo dado dialogar com movimentos sociais. O que estava em jogo, para a massa efervescente de franciscanos médios, não era a abertura da universidade para os movimentos sociais ou a abertura da sociedade para a realização da política para além dos gabinetes burocráticos do Estado. O que estava em jogo era a autoridade caprichosa da família franciscana sobre seu mundinho restrito e mesquinho. Sua altivez é tal que, no seu entender, é dado a ela decidir sobre os limites da liberdade de manifestação. O domínio do franciscano sobre sua ilha está acima das grandes questões que a sociedade brasileira se coloca, tamanha a sua empáfia doentia. É como se o além-muros não existisse ou, ainda que existisse, necessariamente orbitaria em torno daquela ilha paradisíaca.

Voltando ao caso das "mulatas". Nosso franciscano médio, dirão alguns, não é tão limitado como pressupõe meu esquema. Ele saberá propor, em sua defesa, que as mulatas da Peruada são apenas um reflexo da cultura brasileira, em clara alusão ao carnaval. Eu até entraria neste debate sobre a naturalização da imagem da mulher negra. Se não o faço, é por uma simples razão: não é isto o que preocupa o franciscano médio. Ele até transita nesta discussão, mas sempre que se vê ameaçado, volta correndo para seu porto seguro: a concepção insular da faculdade. Cedo ou tarde, nos será revelado que, independentemente da polêmica se há ou não reforço a estereótipos opressores, os alunos devem decidir, assim como, em 2007, cabia-lhes decidir sobre as liberdades democráticas dos militantes de movimentos sociais.

E vou além: nosso franciscano médio é suficientemente ignorante para acreditar que, na remota hipótese de uma situação opressora envolvendo as negras seminuas, poder-se-ia remediar a situação com mulheres brancas seminuas, ou com homens seminus! Convenhamos: somente um espírito persistente no ato de chafurdar no lamaçal da tolice pode conceber a opressão social como um jogo de soma zero, ou como um problema de nivelamento. Que brilhante solução encontrada: vamos sensualizar todos, coisificar todos, sem distinção! E para cada mulher negra, vamos aliviar o fardo do racismo com uma mulher branca! E para cada mulher exibida como um apetrecho, como um adorno num ambiente orgíaco, vamos colocar um homem para anular o machismo! Ao que parece, os movimentos de raça e gênero perderam tempo demais discutindo as relações entre capitalismo, opressão de raça e de gênero. Só o que precisamos fazer é proceder com ajustes numéricos. O pensamento social é insignificante perante a aritmética...

Em suma, espero ter apresentado a contento uma perspectiva de análise para o ridículo chilique franciscano do presente. Infelizmente, a melhor faculdade de direito... etc. etc..., não bastasse ser composta majoritariamente pela elite e pela classe média, vive de discutir as disputas patrimoniais de Caio e Tício. Os problemas da mulher negra brasileira não integram o sistema "Largo de São Francisco", sendo que o mesmo vale para o racismo e o machismo em geral. O cordão sanitário da sacralização do Largo isola esses temas.

O que fazer? É possível romper este cordão? Creio firmemente que sim. Como? Mais do que "como", devemos perguntar "quem". As flores que brotam do asfalto franciscano, com efeito, são demasiado escassas. De todo este episódio grotesco, o mínimo que podemos propor é: cotas raciais e sociais já!

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Esquerda e direita para Emir Sader

Nunca fui de acompanhar o blog do Emir Sader. Sempre tomei contato com seus textos quando os recebia por e-mail, e isto por estar cadastrado em alguns e-groups nos quais se realizam debates que interessam ao público de esquerda. Devo dizer que nunca fui simpatizante das ideias deste intelectual, sobretudo por suas posições políticas demasiadamente entusiastas com relação ao governo do PT. Não obstante, eu o respeitava como um intelectual sério, sobretudo por ele fazer parte de um restrito universo de pessoas que, em tempos de obscurantismo neoliberal, se atrevem a dialogar com a herética teoria marxista.
No entanto, depois da última publicação de Emir Sader, não consigo mais enxergá-lo como um reformista honesto. Refiro-me ao texto "Corvos e urubus", que se encontra disponível no seguinte endereço: http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=764.
É compreensível que uma pessoa de esquerda nutra esperanças no governo Dilma. Não partilho delas de modo algum, mas entendo o justo horror ao tucanato, aos democratas e aos demais setores conservadores e reacionários. Deste horror, aliás, eu partilho. Mas mesmo que se entenda que o PT representa uma alternativa real aos velhos e carcomidos setores da direita (ponto de vista do qual discordo, e pretendo apresentar algumas razões para tanto), nem assim se justifica uma postura de amor incondicional em face do governo. 
Causa espanto que um marxista, como é o caso de Emir Sader (que continua a se definir assim, salvo engano meu), idolatre um governo. Note-se que falo em idolatria não só porque este autor idealiza a gestão atual e a anterior, mas também porque as defende com um fanatismo capaz de produzir simplificações teóricas grosseiras e de justificar posições políticas as mais oportunistas. E mais: este método é utilizado ainda para hipostasiar outros governos latinoamericanos da atualidade.
Passemos ao texto que me motivou a escrever a presente crítica. Sader começa se referindo a uma "gente que se diz de esquerda" que viveria de criticar a outra parte da gente de esquerda. O primeiro tipo de gente de esquerda, segundo nosso autor, seria um punhado de sádicos, ciosos por derrotas da classe trabalhadora, e mesmo maníacos por elas, enxergando-as em toda parte. Seria, ainda, uma confraria de pessimistas incorrigíveis, arautos do retrocesso social. Sua atividade, para além de semear más notícias, resumir-se-ia em apontar traições da esquerda, poupando-se a direita das devidas denúncias.
Para Sader, tudo caminha muito bem. Quem se insurgir contra os rumos em curso parece mais um lunático, tamanho o disparate. Nosso autor poderia fazer como José Serra, que citou os partidos que denunciavam o capitalismo enquanto causa última das mazelas sociais como "paranóicos".
Examinemos brevemente a realidade brasileira, idilicamente retratada por Sader como a expressão de uma torrente de formidável progresso, ou como o porto seguro dos trabalhadores contra a "direita". Acaso os trabalhadores podem confiar seus interesses e necessidades ao governo, buscando abrigo das maldades do tucanato? Se considerarmos a linha do governo petista para as lutas encampadas pelos carteiros e pelos bancários, parece-me que não. Uma vez que a diretiva adotada foi a de intransigência total, no sentido de corte de pontos dos grevistas e negação categórica das reivindicações (que se chocam contra as metas de "austeridade" da política econômica adotada), fica difícil colocar Dilma e sua equipe como aliados dos trabalhadores. Seria possível citar uma infinidade de casos de "traição" (a palavra maldita que tanto incomoda Sader), como o veto ao kit anti-homofobia, o salário mínimo infamante, o modelo privatista de gestão dos aeroportos etc. No entanto, não quero parecer "rancoroso" (já que pertenço, suponho, ao "segundo tipo de gente de esquerda"), remoendo coisas do "passado", até porque a atual conjuntura nos fornece elementos de análise suficentes.
De acordo com Sader, o pecado original da esquerda ranzinza e rancorosa é estar distanciada das lutas de massas, restringindo-se somente à luta ideológica no apertado universo da esquerda. Esta crítica revela-se imediatamente anedótica quando se percebe que as lutas de massa, nas quais as organizações políticas mais radicais se fazem presentes e aportam para o seu desenvolvimento, realizam-se precisamente contra a linha adotada pelo governo que este intelectual adora de modo tão ardoroso. E o mesmo vale para as campanhas dos petroleiros, dos metalúrgicos e do funcionalismo federal: todos estes setores esbarram nas metas de inflação e de contenção de gastos que o governo estipulou para bem servir à "economia" (leia-se: aos capitalistas).
Nosso teórico não leva nada disto em conta. O grande problema seria esta esquerda que não quer avançar, e que só pensa em dividir. É de se imaginar, assim, que os trabalhadores deveriam ter apoiado em bloco a reforma da previdência imposta por Lula e encomendada pelo capital financeiro, por exemplo. Romper com a linha capitulacionista da CUT deve ter sido puro divisionismo, pois seria, então, muito melhor que todos aplaudissem juntos o desmonte da seguridade social. Infelizmente, Sader prefere não enxergar que foi da ruptura com o governismo, impulsionada pelos revolucionários, que surgiu a Conlutas, o instrumento de luta sindical mais combativo do país. Uma central pequena e jovem, reconheço. Mas quando os operários da construção civil se insurgiram contra a precarização do trabalho de que eram vítimas, quando se puseram em combate contra as empreiteiras beneficiadas pelo PAC, as mesmas empresas que doaram milhões à candidatura do PT, foi na Conlutas que eles encontraram o ponto de apoio necessário para o enfrentamento. Mas o que isto importa para Emir Sader? Será que a participação dos revolucionários nos levantes de Jirau seria mera luta ideológica? Será que a esquerda não avançou quando os trabalhadores incendiaram os canteiros de obras no auge de sua radicalidade?
O que se vê no texto de Sader não é um exame da luta de classes no Brasil e na América Latina, e sim uma seleção de pontos que, em tese, seriam favoráveis aos governos. Quando comenta sobre a política externa "soberana" do Brasil, convenientemente não menciona a nefasta ocupação militar do Haiti e os empréstimos de Lula ao FMI, ambas medidas claramente pró-imperialismo. Quanto aos outros governos latinoamericanos, insinua-se que os avanços verificados são produto da benevolência dos governantes. É como se líderes benfazejos derramassem sua graça sobre o povo, que seria presenteado com sua generosidade. Nada mais tolo. A prova cabal de que as melhorias sociais obtidas em países como Bolívia e Venezuela deve-se à mobilização das massas e não aos governos em si está no fato de que, na atual conjuntura, as lutas populares para novas conquistas (ou para evitar retrocessos) opera-se contra as políticas governamentais, e não a partir delas. É estranho que o "marxista" Sader pense as mudanças sociais nos termos das ações dos govenantes e não no interior de uma luta de classes e de um processo econômico global.
E quando se chega ao cerne da questão (o conflito entre o governo e os trabalhadores), Sader novamente nos obriga a duvidar de seu marxismo. Veja-se esta passagem, referente aos enfrentamentos entre a polícia e a população na Bolívia:

"Numa situação de crise como a da Bolívia atualmente, tudo o que podemos desejar é que se chegue a um acordo político entre o governo e setores do movimento indígena que estão em enfrentamento aberto. Nem o governo é de direita, nem os movimentos indígenas fazem o jogo da direita. É nesse marco que devemos almejar que sejam enfrentados os conflitos".

Como marxista e revolucionário (perdoem-me a redundância, que utilizo apenas para ser enfático), não posso concordar. Tudo o que se pode esperar é que o governo repressor se entenda com o povo reprimido? Acho que se pode (e se deve) esperar um pouco mais. É preciso almejar um governo dos trabalhadores, que sirva para promover seus interesses de classe, e não para lhes esmagar com o peso da violência policial.
Diz Sader que nem o governo é de direita e que nem os movimentos indígenas fazem o jogo da direita (por pouco o autor se salvou da infâmia absoluta). Tudo seria um terrível mal-entendido, um lamentável conflito fratricida entre a esquerda, em que nenhuma das partes poderia ser maculada com a pecha de direitismo. Um observador marxista poderia observar o quadro de um levante popular suprimido pela força bruta do Estado e enxergar nele o fenômeno da luta de classes, em que um dado setor do povo se enfrenta com aparelhos repressivos cuja razão de ser é a manutenção do status quo e, em última instância, das relações de produção que regem uma sociedade dividida em classes de interesses estruturalmente inconciliáveis. Quanta ingenuidade! Perspicaz mesmo é Emir Sader, que só faria uma denúncia real do fato se o presidente em exercício não lhe despertasse simpatia. É como se o fenômeno político da repressão não dissesse nada sobre a natureza de classe do Estado e do governo que o administra, como tudo se resumisse a uma inocente rusga entre irmãos...
A fundamentação de Sader para seu posicionamento encontra-se no parágrafo anterior:

"Os conflitos na esquerda, no campo popular, tem que ser discutidos e tratados como conflitos entre tendências de esquerda, mais moderadas ou mais radicais, sem desqualificações que caracterizem os outros como fora do campo da esquerda. Esta atitude é o primeiro passo que leva a assimilar outras tendências da esquerda à direita e assumir equidistância em relação a elas".

Que emocionante lamentação! Quase verti lágrimas quando me deparei com o "ressentimento" desta parte da esquerda que seria maldosamente excluída do campo geral da esquerda pelos setores denuncistas, derrotistas, divisionistas etc. Que os esquerdistas "moderados" possam perdoar os "radicais" por seus excessos, por suas impiedosas "desqualificações"!
Suponhamos que Sader tenha razão. Quem seria a esquerda moderada? O PT e o PC do B, é claro. E por que moderados? Porque defendem um capitalismo humanizado, uma economia de mercado com distribuição de renda ou qualquer outro eufemismo que se possa imaginar. Mas nem tudo é fácil nesta vida. Não se pode sublimar as "dificuldades" do caminho, de sorte que os avanços se realizam em meio a "contradições". O Bolsa Família caminha lado ao lado com o "Bolsa Banqueiro" do rentismo financeiro; a inclusão no ensino superior efetiva-se mediante o socorro aos tubarões do ensino criados por FHC; o incentivo à indústria convive com os recordes de acidentes de trabalho e com a drástica expansão de uma doença chamada terceirização; e assim por diante.
O que se vê, ao fim e ao cabo, é a implementação do programa do Consenso de Washington, que normalmente é concebido como um mero receituário econômico. Ledo engano. O Banco Mundial e o FMI apresentam diretivas de políticas sociais para os países, diretivas que se inspiram numa lógica oposta à do bem-estar social (cuja insuficiência não será objeto de crítica aqui): "foquismo" nos benefícos ao invés de universalismo, pequenas doses de auxílio monetário ao invés de serviços públicos de qualidade e gastos mínimos com a área social. As gestões do PT foram seguidoras exemplares desta doutrina reacionária, o que não impede Emir Sader de louvá-las como os antigos louvavam a imagem de um bezerro de ouro.
O capital tem muito que agradecer por tantos serviços prestados ao longo de um vibrante período econômico. Sua gratidão, inclusive, já se manifestou nas cifras milionárias que financiaram as campanhas eleitorais do PT, verdadeiros investimentos com retorno em curtíssimo prazo. O trabalho, por sua vez, ficou com uma parte menos generosa do alardeado crescimento da economia brasileira: endividamento, doenças ocupacionais e arroucho salarial para os servidores e para inúmeras categorias de trabalhadores. Um pequeno preço a se pagar em troca de um nível de consumo maior, dirão os empresários.
Se perguntarmos a Emir Sader o que ele tem a dizer sobre isso, e se supusermos que ele não negará a realidade da classe trabalhadora, teremos como resposta que a vida é assim, que os benfeitores do governo ainda não conseguiram resolver todos os problemas do povo. Falta paciência aos radicais. Um dia, perceberão as vantagens da moderação, esta inefável virtude que inspira equilíbrio e temperança! E se forem obstusos o bastante para percebê-las, que ao menos possam respeitar essa esquerda moderada.
Ora, este debate exige que compreendamos o que vem a ser este bloco chamado de esquerda. Sader anatematizou os revolucionários por excluírem deste bloco os gestores da exploração capitalista no Brasil. Esquerda, para Sader, é um campo vasto, um latifúndio (como aqueles utilizados pelo agrobusiness, sócio inseparável do PT e do PC do B). Nele cabem desde ex-guerrilheiros transformados em milionários emergentes até os mais relutantes adeptos do bolchevismo (como é o meu caso, felizmente). Que imensidão! Aliás, trata-se de um verdadeiro "coração de mãe" (perdoem-me o recurso a esta expressão impregnada de um machismo sutil), em que sempre cabe mais um. Gilberto Kassab, antes uma figura demoníaca do demoníaco DEM, provavelmente passará por uma conversão, por uma redenção que se patenteará na adesão de seu novo partido ao governismo. Parece oportuno indagar se Emir Sader receberá Kassab com um caloroso abraço...
Que meus pouquíssimos leitores saibam desculpar minha ironia. Sou demasiado tolo para compreender a importância das alianças na política. Sou suficientemente ingênuo para supor que doações milionárias de empresas e negociatas com cargos e ministérios possam interferir nos rumos da administração pública.
Voltemos ao debate sobre o que é esquerda. A concepção de Sader, como vimos, é ampla o suficiente para reunir, sob a mesma tenda, um neocapitalista como Palocci, pastor de um rebanho de rentistas cada vez mais endinheirados, e um operário como Zé Maria, porta-voz do programa socialista do PSTU. Que tipo de critério pode ser tão acolhedor? Não se sabe.
Os marxistas, por sua vez, têm um critério. O alinhamento político de uma pessoa, de uma organização ou de uma gestão, para nós, deve ser aferido pelos interesses de classe a que se submete. Nesta perspectiva, não é possível imaginar que os amigos dos capitalistas estejam agrupados junto com os amigos dos trabalhadores. Aquele que garante o embolso da mais-valia em favor dos burgueses não é parceiro daquele que enfrenta essa burguesia cotidianamente.
Poderiam atirar-me à face que o critério marxista é muito rigoroso. Afinal, Eike Batista e companhia não poderiam confiar seus investimentos a uma esquerda pouco "acolhedora". Seria melhor continar com Sader, que nos traz a principal tarefa para unificar a esquerda dividida: combater a direita!
Notável a solução encontrada, não? Resta saber, então, quem é esta direita. PSDB e DEM? Com certeza (e agora falo sem qualquer sarcasmo). Mais alguém? Tendo a achar que Emir Sader não ampliaria muito a lista. E o PMDB? Ora, seu trosko sectário, deixe o centrão em paz! Deixe que o companheiro Sarney e seus colegas de mandonismo sigam usufruindo suas volúpias. E o PDT? Ora, seu radicalóide inconsequente, deixe o Paulinho da Força em paz! Deixe que este herói do sindicalismo brasileiro siga aproveitando as maravilhas da colaboração de classe. E o PSB? Ora, seu fruto maldito da esquerdalha, deixe o Skaf em paz! Deixe o empresariado industrial deste país explorar sua mão-de-obra. O que importa é que eles ajudaram a vencer o mal absoluto em que se consubstancia a dobradinha demotucana.
Sim, eis aí o grande horizonte da esquerda: derrotar eleitoralmente dois partidos reacionários. E com que métodos? O PT nos mostra o caminho: as alianças com o capital e com os partidos burgueses. Com que programa? O do capital: Usina Belo Monte, abertura à farra das multinacionais (agora com a Foxconn, este flagelo do operariado chinês), Correios S.A., leilões de poços de petróleo, nova reforma da previdência, e por aí vamos. Graças ao nosso intelectual, somos levados a utilizar os métodos e o programa do capital para derrotar... a direita!
"Mas com Serra, Aécio e demais seria pior"! "Os revolucionários querem o pior para o país!". A reação é sempre o terror. Quando os revolucionários denunciaram a Carta aos Brasileiros e seu compromisso com a sacrossanta dívida pública, a histeria dos petistas não foi menor, como bons tementes ao Deus-mercado que se tornaram. O que resta à esquerda? Apenas o mal menor permanente. Vamos permitir que Dilma despeje o ônus da crise internacional do capital sobre os ombos fatigados (e lesionados por esforço repetitivo) dos trabalhadores, pois seria pior se o governo fosse outro. E ai de quem chiar! O mais leve sussurro contra o governo petista fortalecerá a direita!
Sejamos todos reféns desta doce dominação. Com Dilma, o jugo é leve, o fardo é suave. Ser atacado pela direita é derrota. Ser atacado pela esquerda é miopia de quem critica ou, quando muito, um necessário percalço de jornada. Com Evo Morales, o caso é idêntico. Bombas de gás e balas de borracha sob Evo são falta de diálogo. Sob outro governante, seriam fascismo. O atual governo boliviano não está em guerra contra o povo que o questiona e o desafia. E se estiver, não nos preocupemos: na imaginação de Sader, friendly fire não mata.
Já me estendi demais. Para encerrar, cumpre insistir no método marxista como o melhor meio de se traçar a fronteira entre direita e esquerda: o recorte de classe. A esquerda digna de seu nome e de seu histórico de lutas é aquela jura lealdade à classe trabalhadora, e não a determinados governos. Os governos mudam de orientação o tempo todo: às vezes mais progressistas, às vezes mais conservadores. O que fica é a tutela incondicional dos contratos, da propriedade privada e de todas as condições necessárias à extração de trabalho excedente de uma classe em favor de outra. Mas a classe trabalhadora não muda. Ela até experimenta mudanças na sua compleição epidérmica, na sua morfologia; todavia, sua condição de polo dominado e de sujeito portador de um futuro melhor para a humanidade persiste. Sigamos com ela, contra todos os seus adversários, contra todos que se postarem junto ao capital contra ela. E não nos enganemos: na luta de classes, não se pode servir a dois senhores. Dilma e o PT escolheram um lado. Que lado é esse? Se perguntarmos à Febraban, à CNI e à Fiesp, teremos a resposta. Ou, se preferirmos, podemos deixar que os contracheques de campanha falem por si mesmos.