sábado, 28 de janeiro de 2012

Enfim, um pouco de humanidade


Trata-se de uma cobertura jornalística séria sobre o caso do Pinheirinho, coisa que, digamos, "está em falta" hoje em dia. Mas o que me chamou a atenção nela, para além de sua qualidade, foi o choro do repórter diante da desolação de uma criança desabrigada.

E não era para menos. A cena é realmente tocante. O olhar perdido da criança em meio aos escombros de seu antigo lar é, talvez, a síntese mais acabada da aflição dos deserdados do capital, é a estupefação de quem se vê joguete de forças que se lhe afiguram como ininteligíveis (dentre elas, o próprio direito). Aquele olhar é a fotografia do oprimido numa sociedade de estranhamento e alienação, uma sociedade em que pessoas são reduzidas a estatísticas, a meros refugos do movimento econômico de especulação do capital.

Não creio, no entanto, que o repórter tenha se emocionado por partilhar da minha perspectiva. A superfície do fenômeno em questão, que nada mais é do que a crueldade de um mundo incivilizado, que não poupa idosos, crianças e deficientes de sua guerra perpétua contra os pobres, é suficiente para comover quem tiver olhos para enxergar a opressão, ouvidos para ouvir o clamor do oprimido e coração para sentir um pouco que seja da sua dor.

Esta qualidade, com efeito, também está escassa. Se observarmos alguns comentários veiculados na internet (em páginas de jornais, redes sociais etc.), encontraremos desde a mais cínica indiferença ("os ocupantes assumiram o risco, sabiam que poderiam ser despejados a qualquer momento") até o mais brutal ódio de classe. Expressões como "extermínio", "raça de vagabundos", "oportunistas" e tantas outras, de repente, irromperam da fossa imunda onde viviam recônditas, pululando sem pudores. O inconfessável tornou-se palavra de ordem. A web fez-se um esgoto a céu aberto.

O contraste da cobertura e da reação do repórter, em particular, com a sua conjuntura é fascinante, pois realça a humanidade perdida (jamais adquirida, dirão alguns mais céticos do que eu) em nosso mundo. Poderão obtemperar-me que nunca foi próprio do homem consternar-se pelo mal que acomete seu semelhante. Entretanto, cito em minha defesa o jovem Marx, que, numa obra pouco conhecida, (apenas um "delírio da juventude", acusará algum althusseriano mais exacerbado!), propunha que ninguém pode ser plenamente feliz enquanto estiver cercado pela infelicidade dos outros, sobretudo quando estes outros existem em número elevadíssimo.

Se concordarmos com o jovem Marx, teremos aí um vínculo ético mínimo entre os homens. Nós o perdemos em algum momento? O individualismo doentio da sociedade burguesa conseguiu romper esse laço? Qual é o instante em que uma pessoa contempla a desgraça de milhares de desabrigados e se limita a dizer que "elas sabiam do risco", ou que as decisões judiciais devem ser cumpridas e ponto final?

Não vou me embrenhar nos caminhos tortuosos a que estas questões tortuosas podem conduzir. Falta-me bagagem filosófica para enfrentar o desafio. Limito-me a citar, apenas de relance, o dedo perverso do direito por trás de tanta insensibilidade. Não pode passar despercebido por nós que a argumentação daqueles que folgam com a calamidade em curso está recheada de elementos jurídicos, mesmo que todos os eventos envolvendo o Pinheirinho, até agora, tenham se pautado por flagrante ilegalidade. Se prestarmos atenção, veremos que  o raciocínio que culpa os próprios moradores pela tragédia que hoje se abate sobre eles, em verdade, envolve a chamada "teoria do risco" e a lógica da eficácia formal das decisões do Judiciário, em detrimento de seus resultados concretos. O direito deve produzir seus efeitos. As pessoas não são nada, a não ser um obstáculo à vontade soberana do magistrado. Em seu discurso oficial, o direito tem a pessoa humana como fundamento e como destinatária. Na prática, porém, ele vale por si mesmo. E se os interesses de milhares foram preteridos em favor dos interesses de um milionário, que seja. Dura lex, sed lex. Antes uma ordem injusta do que a "injustiça" imanentemente contida na suposta "desordem" de uma vida sem juízes e policiais para promover o monopólio "legítimo" da violência.

Parênteses: subitamente, emergiu no debate uma preocupação formidável com a satisfação dos créditos trabalhistas. Mas esses recém-convertidos a interessados na proteção dos direitos trabalhistas podem ficar descansados, pois, no que diz respeito à massa falida da Selecta, não há créditos de ex-empregados. Apenas o fisco consta como credor. Aliás, nunca é demais lembrar que a empresa de Nahas nunca pagou IPTU, e por isso dever-se-ia reconhecer, por presunção absoluta, o abandono da posse. Entretanto, nosso Judiciário nos dá prova de que a dicotomia entre posse e propriedade não passa de um capricho acadêmico, de uma formulação cosmética de pseudocientistas entregues ao fetiche das intermináveis e cosméticas classificações dos institutos jurídicos. Função social da propriedade e da empresa, teoria da posse-trabalho, valor social do trabalho... o que importa mesmo para o direito burguês é o título sagrado do domínio. O resto é perfumaria.

Como não poderia deixar de ser, o direito concorre para a desumanização em torno do caso do Pinheirinho. Ele inverte as prioridades que o senso comum indicaria como razoáveis, a não ser, claro, para os ranços da classe média mais resistentes aos patamares mínimos de uma civilização burguesa. Confesso ao leitor, não sem pesar, que anseio pelo dia em que nossa classe média descubra o iluminismo. Não é agradável para um socialista ter de recuar o nível do debate ao século XVIII.

Voltando ao repórter, finalmente. Seria aquele choro, então, um resgate da humanidade perdida nos descaminhos do direito e de outros fatores? Estaria eu demasiadamente impressionado com o fato, rendendo-me, quem sabe, ao mito do bom selvagem? Digo com certeza o seguinte: aquele choro rompeu, por um átimo que seja, com o estranhamento proporcionado pelo reino do capital. Rompeu, ainda, com o estranhamento que o direito cria entre as pessoas. Com o egoísmo empedernido do "sujeito de direito", que encontra no próximo um obstáculo a sua liberdade, e não a realização dela.

Não podendo conter o pranto, o repórter deu as costas à câmera e deu vazão às suas lágrimas. Isolou-se, fugiu da exposição, como se fizesse algo embaraçoso. Mas não há nada do que se envergonhar. Ao contrário: foi belíssimo, esplêndido. Abençoadas sejam cada uma daquelas lágrimas. Elas nos trazem a sensação de que "nem tudo está perdido", de que a infelicidade de uma pessoa pode tocar diretamente o coração da outra.

Aquele repórter não esbravejou contra a tirania da especulação imobiliária, contra o despotismo terrorista do governo estadual e contra a omissão criminosa e covarde do governo federal. Ele simplesmente chorou. Não ficou com os olhos marejados, como se diz. Não deixou uma lágrima escapulir pelo canto do olho. Chorou mesmo. Veio do peito. Deve ter sentido aquela compressão desagradável no peito que sentimos quando a dor de uma emoção vence nossos mecanismos psíquicos de resistência.

Aquele ser humano, que honrou sua espécie naquele memorável instante, não invocou a necessidade de superação das classes sociais. Ele "apenas" chorou ao ver uma criança recém-convertida a indigente. Numa palavra: compaixão. Virtude sublime num domínio de trevas. Angelical, na filosofia cristã. É o bastante para mudar o mundo? Não. Mas é um começo, suponho. Se ela angariar mais adeptos, talvez a noção corrente de que dinheiro, terra e sentenças valem mais do que gente perca algum espaço, aliviando um pouco o fardo do capital e fortalecendo a luta por horizontes decentes, que sinalizem para a emancipação.

Obrigado pelo seu choro, caro amigo. Que ele ajude a descoisificar quem perdeu sua humanidade ao culpar o miserável por sua miséria. Agradeço pelo bálsamo que sua sensibilidade me proporcionou.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Resposta

Segue minha resposta a um comentário feito sobre meu texto anterior ("Direito, Estado e terror no caso do Pinheirinho"). Coloco-a como um texto à parte em virtude dos limites de caracteres para comentários.

Aproveito para, antecipadamente, justificar o "ardor" da resposta: se a vida, como se sabe, "não se defende só com palavras", decerto que palavras mornas em nada podem agregar à defesa da vida. Se neste instante uso apenas de palavras para defender a vida, o mínimo que posso fazer é entregar-me de corpo e alma à tarefa, é dotar cada dizer com a justa indignação da sempre justa perspectiva do oprimido. É, enfim, fazer de um texto um instrumento de suas demandas mais sentidas. Um instrumento humilde e limitado, mas sincero e intenso nos seus propósitos. Esta frente de batalha é quase insignificante, bem sei. Mas como luto em nome de nossa classe trabalhadora, só posso fazê-lo apaixonadamente. Eis, enfim, a resposta:

"Não se exagerou na dose, sequer houve quem corresse risco de morte". Essa é a versão da PM, do governo do Estado e de seu departamento de imprensa, também conhecido como Rede Globo. A versão dos moradores é outra. Se a Globo não a noticiou, é prudente que se busque meios de mídia alternativos. sobretudo para quem se diz tão preocupado com a situação dos ocupantes.

Veja-se, por exemplo, este vídeo, "esquecido" pela tão séria emissora: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,pm-ira-apurar-agressao-a-morador-do-pinheirinho,pm-ira-apurar-agressao-a-morador-do-pinheirinho-em-sao-jose-dos-campos,826804,0.htm

É de se perguntar que tipo de resistência aquele homem negro ofereceu para dar ensejo ao espancamento que sofreu. Ele sequer vestia sua armadura de "Robocop da rua 25 de março", para usar a expressão de mau gosto deste meu interlocutor, que não hesita em fazer troça com a luta do povo.

Que pensar desta situação? Conto do vigário? Claro. Tudo o que depõe contra o comportamento da PM e do governo estadual só pode ser uma farsa. Aquele homem espancado e aqueles policiais covardes, então, só podem ser atores pagos pela oposição ao tucanato, igualmente responsável pela "composição de fotos" que desmente a delicadeza e civilidade da operação...

Aliás, podemos ir mais além. É uma pena que os cidadãos deste estado e deste país ainda não tenham se dado conta do paraíso em que vivem. Que o(a) leitor(a) sensível à causa dos deserdados do capitalismo possa encontrar um bálsamo na brilhante tese da "intriga da oposição". Da próxima vez que se deparar com uma pessoa prostrada no chão, rosto abatido, roupas em trapos e olhar de desesperança, não se preocupe. Não passa de um embuste. Trata-se apenas de um farsante representando um papel a soldo dos adversários do PSDB, engajando-se na torpe tentativa de criar a sensação de que as coisas não vão bem...

Não, meu caro interlocutor, não é a versão do governo que me interessa. O que me interessa é a perspectiva do oprimido, é a verdade do esmagado. A verdade de quem oprime é a verdade do tacão de ferro. Ela não argumenta, não convence, somente impõe. O choro de quem viu suas casas destruídas por trator e de quem carrega um ente querido nos braços, ao contrário, não impõe nada. Ele convida à solidariedade de classe, e foi esta a escolha que eu fiz. Sou, pois, confesso quanto à acusação de escolher um lado no conflito, expondo-me ao que se chamou de leitura "tendenciosa". 

Mas há que se refletir: acusar meu relato de tendencioso é ignorar que não sou indiferente ao que está acontecendo. Meu compromisso é com a classe trabalhadora, e não com seus algozes. Não que, em virtude disto, eu tenha distorcido fatos. Descrevi o que testemunhei e o que outras pessoas me testemunharam, assumindo o risco, é claro, de apresentar fatos não vistos por mim diretamente.

Todavia, acreditar piamente na versão oficial da PM, do governo e da mídia só pode conduzir a posições dignas de escárnio. Observe-se o que nos diz o major da Polícia sobre as condutas de sua instituição: http://www.youtube.com/watch?v=gEcF14xvn_Q&feature=share

É possível mesmo acreditar no cenário idílico apresentado pela Polícia? Acaso a violência policial neste país e, em particular, neste estado, não passa de uma lenda? Ora, não sejamos ridículos. Até o mais encastelado dos filhos da burguesia pode obter informações além dos muros de seu condomínio-fortaleza pela internet. As ilhas paradisíacas que flutuam sobre um oceano de pobreza não são de todo incomunicáveis. Dizer que as coisas vão bem só pode ser má-fé.

Quanto à resistência dos moradores, episódio retratado por meu crítico com um toque muito singular de farisaísmo, só posso dizer-lhe o seguinte: imagine-se na iminência de perder o teto sob o qual tem vivido e sem qualquer horizonte de moradia alternativa. Imagine-se, em poucas palavras, visitado pela fada da miséria. Numa situação-limite como esta, talvez o mais ardoroso defensor de uma sociedade desumana como a nossa se visse compelido, no apogeu de seu desespero, a se armar em defesa de sua sobrevivência e de seus familiares. Quem não puder ao menos se colocar no lugar daquela gente, furtando-se a um exercício mínimo de alteridade, não está em condições de entender o que está em jogo. Pessoas assim, embrutecidas por preconceito de classe e por desprezo pelos desvalidos, nada têm a contribuir para a solução dos problemas, e o melhor que poderiam fazer é poupar a humanidade de seus queixumes melindrosos e arrogantes. Que guardem suas opiniões reacionárias para seus círculos particulares de mesquinharia e obscurantismo.

Condenar a "milícia" dos moradores é como condenar as fileiras do Quilombo de Palmares ou os exércitos de Canudos. É dizer que o oprimido está no mundo apenas para ser espezinhado pelos poderosos, e que resistir aos crimes que lhe são praticados é o maior dos crimes. Não lhe é dado sequer o direito à legítima defesa. Estender o pescoço ao carrasco é a única atitude que se reconhece como legítima.

No entanto, estender o pescoço ao carrasco é um fenômeno que simplesmente não existe na história das classes sociais. Houve mártires, na história, que preferiram sucumbir sem se valer do recurso da defesa. Entretanto, o que acontece com indivíduos isolados não necessariamente acontece com as coletividades, sendo que o oposto é que é verdadeiro. Esperar que coletividades inteiras assistam inertes à sua destruição, para além de sadismo e de regozijo com a primazia absoluta do opressor, revela um total desconhecimento acerca da dinâmica das sociedades divididas em classes.

Já no que diz respeito aos credores da massa falida, somente  o erário público figura como tal. Aliás, vale lembrar que a empresa de Nahas nunca pagou IPTU do imóvel, e por isso deveria incidir presunção absoluta de abandono. Mas se a juíza Márcia Loureiro não observa sequer as regras de direito processual, que dirá as de direito material. E convenhamos: o erário público deve estar a serviço da população, e não do "Estado".

Por fim, é preciso comentar o meu suposto "vigarismo ideológico do progressismo politicamente correto", cujos representantes "não se indignaram nem por um segundo, por anos, com as condições degradantes dos moradores do acampamento Pinheirinho, e agora pretende (sic) criar polêmica por puro e simples apetite político".

A tragédia do Pinheirinho tem responsáveis, não se caracterizando como um evento aleatório. Há muitos responsáveis, inclusive quando se considera que a omissão também concorre para um resultado danoso. O PT e o governo federal, assim, também são dignos do seu quinhão. No entanto, a desapropriação do terreno, realizada pelo descumprimento de um acordo e de uma decisão do TRF, só pode ser explicada pela vontade política que determina, em última instância, as ações da PM. Eis porque o governo estadual, com o PSDB à frente, é o maior responsável. Cito, a propósito, a opinião de um jornalista sobre o assunto: http://www.youtube.com/watch?v=mghmTSVEyrM&feature=youtube_gdata_player

E quanto ao longevo esquecimento das condições degradantes dos moradores, posso dizer com tranquilamente que nunca me alinhei aos partidos sobre os quais recai a omissão (PSDB nas instâncias municipal e estadual e PT na instância federal). Estou ao lado daqueles que sempre estiveram apoiando aquelas famílias e que, neste exato momento, engajam-se em campanhas de solidariedade por todo o país. Diferentemente do filisteu que, por mera retórica, invoca as necessidades dos moradores e, ao mesmo tempo, derrete-se em cantos panegíricos em favor de uma política de governo que, primeiro, despeja 9 mil pessoas, e só depois começa a pensar no que fazer com elas.

Espero sinceramente que este bajulador da PM e do tucanato se dê ao trabalho de visitar os lugares onde as pessoas foram amontoadas, bem como os escombros daquilo que, um dia, foi o lar daquela gente sofrida (http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=w6a0Vl4e5bU). E que se ocupe de ajudar as vítimas de alguma forma. Mas que me entenda bem: quando digo "vítimas", refiro-me a 9 mil flagelados. Ninguém vai passar com um trator por cima da casa do Alckmin. 

domingo, 22 de janeiro de 2012

Direito, Estado e terror no caso do Pinheirinho

Era noite na FDUSP. O professor Marcus Orione ministrava uma de suas aulas com seus métodos e sua perspectiva distoantes do espaço. Apresentava seu ceticismo e sua crítica radical ao direito, vergastando as esperanças dos alunos mais otimistas. Um deles, indignado, exclama:

"Professor! Não é possível que o direito não sirva para nada! Ele tem uma função!"

O interpelado, sem se deixar abalar, sorri tranquilamente, e responde:

"Sim. O direito tem uma função: destruir as pessoas".

A simplicidade da colocação encanta por dizer tanto com tão poucas palavras. Palavras que nunca foram tão capazes de retratar a realidade como hoje.

Hoje, 22 de janeiro de 2012, aconteceu um massacre (está em curso no momento em que escrevo). Não se  sabe o saldo de mortos e feridos ao certo até agora. Só o que se sabe é que um milionário foragido da Justiça está obtendo para si a posse de uma área onde cerca de 9 mil pessoas habitam; que estas pessoas não têm para onde ir; que estão defendendo seu pedaço de terra como podem e que estão pagando com suas vidas por isso.

Não seria exato dizer que há um confronto entre o direito de propriedade de um e o direito de moradia de muitos. Afinal, não há serviços públicos de nenhuma espécie na comunidade do Pinheirinho. Não há condições de vida decentes e cidadania (a não ser o que permite o valoroso esforço de auto-organização daquela gente destemida). Os moradores de lá lutam não para "morar" (no sentido forte) naquele terreno, e sim para "sobreviver" nele. Mas nem isso lhes é autorizado agora.

As autoridades querem os moradores fora do Pinheirinho. Para onde devem ir? Não sabem informar e, francamente, não é isto o que importa. Não importa para o Estado e nem para o direito. A ordem judicial (falaremos depois das irregularidades jurídicas do caso) diz apenas "saiam". O "para aonde" é uma pergunta que o Judiciário não se faz. Lembro-me agora do comentário ácido de um advogado pró-Pinheirinho, dizendo que esta ordem de reintegração mais se parecia com ordem de "desintegração". Que bom seria para o poder público se aquela gente pudesse simplesmente se desfazer no ar sem deixar vestígios...

Mas elas não podem se desfazer no ar. Precisam ser "desfeitas", e não há como fazê-lo sem deixar um mórbido rastro de sangue. E de quem será a culpa de tanto horror? Sim, horror, pois uma sociedade civilizada só pode ser arrebatada por tal sentimento diante de derramamento de sangue, não?

A culpa é da juíza estadual, que determinou a reintegração? Mas ela apenas cumpriu a lei segundo seu douto e ilibado entendimento!

A culpa é da PM, que "exagerou na dose"? Mas os moradores resistiram à ordem policial, desrespeitando a autoridade do próprio Estado!

A culpa é dos governos, que procrastinaram as negociações o quanto puderam para que se efetivasse a decisão do Judiciário? Mas era preciso respeitar a decisão da Justiça, sob pena de se atentar contra a sagrada separação dos poderes!

Das duas, uma. Primeira possibilidade: ninguém tem culpa. O que está acontecendo é produto do acaso, ressaca dos deuses, intempérie da natureza etc. Segunda possibilidade: a culpa é dos próprios moradores.

Talvez a culpa seja dos moradores mesmo. Essa teimosia em querer existir é realmente muito petulante. Não poderiam eles simplesmente abaixar as cabeças e rumarem para lugar incerto e não sabido? Não poderiam entender que não ter nada e quase nada é quase a mesma coisa? Falta estoicismo a esta gente, isto sim!

Tantas autoridades e ninguém para se responsabilizar! Note-se que cada uma delas, sem exceção, poderia ter feito algo para evitar o pior. No entanto, as responsabilidades são sempre matéria de discussão posterior. Primeiro, alguém faz o serviço sujo. O rateio do ônus vem depois, até porque a resistência dos oprimidos sempre rende alguns "abatimentos".

Veja-se o que se passa. Os moradores se defendem da PM com barricadas, e ateam fogo em objetos como estratégia defensiva, numa desesperada tentativa de retardar o avanço do exército inimigo. Esta tática de degradar o ambiente para criar obstáculo à força invasora, que vem desde a Comuna de Paris pelo menos, é imediatamente associada a vandalismo. É como se a destruição fosse feita por prazer, e não por necessidade. É como se os pobres fossem uma multidão desvairada de hooligans, e não pessoas tentando proteger a si próprias e a seus entes queridos da selvageria policial. Sua resistência é projetada como justificativa da violência contra a qual se insurgem. Uma lógica um tanto paradoxal, convenhamos.

É claro que a imprensa não vai se dar ao trabalho de retratar o lado dos ocupantes. Cabe a ela narrar a suposta barbárie contida na resistência. As mulheres grávidas e as crianças feridas pela polícia não fazem parte dos informes. A palavra "morte" sequer é pronunciada.

Ah, se pelo menos a PM fosse "disciplinada"! Alguém até poderia suspirar este inocente pensamento. Todavia, a reincidência persistente da metodologia do terror depõe contra a instituição. Enquanto aparato de Estado, não se pode esperar outra coisa da polícia a não ser brutalidade. O Estado é uma organização terrorista, é violência de classe concentrada. Carimbos de cartório, ordens judiciais e procedimentos administrativos são adornos sob os quais se esconde a mesma barbárie que se encontra no narcotráfico, nas máfias e nas organizações ditas terroristas, que não são as únicas dignas desse nome. O maior carrasco e assassino da história é o Estado.

O terror do Estado pode agir de duas maneiras: "de ofício" ou acionado. No presente caso, ele foi acionado pelo Judiciário. Pela ideologia jurídica, isto torna legítima a violência estatal. Basta que algum excelentíssimo senhor doutor juiz de direito libere a fera policial das cadeias que a acorrentam para que seus atos de crueldade sejam revestidos de uma aura cândida de ordem, integridade das instituições, Estado de direito etc.

E como foi que chegamos a este extremo? Um magistrado deveria pensar muito bem antes de por em ação a bestialidade fardada, certo? Ora, o caso do Pinheirinho revela-nos a que veio o Judiciário:

Não vou me lembrar de todos os detalhes do processo, mas quero pelo menos relatar os mais aberrantes. O grupo Selecta (do Naji Nahas), há vários anos atrás, buscou em primeira instância uma liminar de reintegração da área em disputa. Seu pedido foi negado, e por isso recorreu. Ao fazê-lo, deixou de cumprir formalidades processuais, como informar a instância recorrida e recolher custas. Não obstante, o apelo foi recebido por generoso desembargador do TJ-SP e, enfim, deferido. Mais: deferido com requinte, pois o julgador fez constar na decisão suas preocupações com a área, já que, nas cercanias, a ilustre Revista Caras cuidava de seus negócios, e seria deselegante o contato com aquilo que hoje se convencionou chamar de "gente diferenciada"...

Surpreendidos com o fato, os advogados do Pinheirinho procuraram o desembargador para tentar reverter a decisão. Falaram da função social da propriedade, do direito de moradia e, sobretudo, das regras processuais do Código de Processo Civil. A resposta que tiveram (em off, claro) foi a de que "os sem-teto não têm nenhum direito". E ponto final. Fica a dica: se alguém quiser deixar de ser considerado sujeito de direito, cidadão e tudo mais, basta conspurcar a sacrossanta propriedade privada...

Sem se deixar esmorecer, os advogados foram ao STJ e, finalmente, derrubaram a liminar. Porém, a juíza de primeiro grau concedeu nova liminar, sendo que, àquela altura, tratava-se de "posse velha", ou seja, já não se poderia mais, nos termos do Código Civil, adotar uma tutela de urgência naquele sentido. Diante de nova afronta à legalidade, tornaram os causídicos a recorrer, mas adivinhem com quem caiu o recurso? Com o amigo da Revista Caras, e graças ao critério jurídico da prevenção (este não falha).

Nosso(a) leitor(a) deverá ter pensado que o nobre desembargador rechaçou de pronto o recurso. Nada mais preconceituoso! Pois pasme, porque não foi isso o que ele fez. De início, tomou o cuidado de verificar se as custas recursais foram recolhidas e se o juízo recorrido havia sido notificado. Afinal, burlar o CPC não é para qualquer um. Feito isto, e deparando-se com a infeliz satisfação dos requisitos recursais, ficou de examinar o pedido com cuidado. E é o que ele tem feito. Até hoje! Dizem as más linguas que os autos lhe servem de assento, como se ele estivesse procrastinando a lide, dando tempo para a ação policial... Imaginem!

Enquanto isso, a juíza estadual segue atuante. Morosidade do Judiciário? Não na sexta vara cível de São José dos Campos, ora essa! E eis que esta paladina da Justiça célere, de ofício, convoca uma reunião com a PM para acertar os detalhes práticos do cumprimento de sua decisão, qual seja, a de desapropriar o povo do Pinheirinho.

Os advogados dos moradores, de repente, lembraram-se de que está escrito em algum lugar que o juiz deve ser imparcial na condução do processo. Protocolaram, então, um pedido junto à Justiça para que a juíza fosse considerada suspeita. Ocorre, inclusive, que pelo CPC, este pedido, por si só, acarreta a suspensão dos trâmites processuais. Mas não neste caso! Não com essa juíza! Não com esse desembargador! Mais um pedido sobre o qual as nádegas do magistrado encontram repouso...

A última saída jurídica pensada pela equipe de advogados foi salientar o interesse da União na causa e, com base nisso, pleitear o deslocamento da competência para a Justiça Federal, onde as cartas estariam menos marcadas. E assim foi feito.

A medida cautelar caiu nas mãos de uma juíza federal substituta, que deu despacho favorável e suspendeu a liminar de madrugada. Festa no Pinheirinho! Pessoas choram de alegria! O povo respira... mas por 13 horas apenas. Foi esse o tempo que a medida durou.

A reviravolta foi assim: como a decisão foi dada por juíza substituta, cabia ao titular da vara dar a decisão definitiva. Na conversa com os advogados, o juiz afirma que não cassaria a liminar de sua colega, que estava "muito bem fundamentada" e que lhe custou horas em vigília; que se mostrava favorável a uma solução negociada para o conflito; que, de fato, estava clara a urgência da demanda, e que sua única dúvida era sobre o interesse da União na lide...

Não, caro(a) leitor(a), não se anime. Não se esqueça que estamos lidando com o Judiciário. A conversa prossegue, e o magistrado nos revela que estava recebendo ligações de entidades da magistratura, de tribunais, de políticos da cidade, e a tal ponto que teve que cancelar duas ou três audiências para atender aos telefonemas. Era preciso decidir o quanto antes, já que aquela situação estava inviabilizando seu trabalho. Contou, enfim, que estava sob muita pressão, e que aquilo tinha que acabar.
Quanta têmpera! Quanto amor ao trabalho! Ansioso para se livrar da pressão, o juiz declina da competência e suspende a liminar.

Um detalhe importante: o juiz havia dito que estava esperando a autuação do processo para examinar os documentos e tirar sua dúvida sobre a competência. Poucos minutos depois, a decisão estava pronta. Ao que parece, o julgador era dotado de capacidade sobrenatural de velocidade de leitura e redação. Ou então - perdõem-me a incorrigível malícia - a decisão já estava pronta, aguardando apenas os ritos burocráticos.

E mais: minutos depois do julgado, eis que chega um funcionário da sexta vara cível de São José dos Campos, encarregado de levar a decisão para lá... Nunca a Justiça foi tão eficiente! Desconfio que algum passarinho voou rapidamente para o Fórum e anunciou a boa nova...

Pausa para reflexão. Já está muito claro que a juíza estadual quer desocupar o Pinheirinho a qualquer preço, afogando os moradores em sangue, se necessário. Seu compromisso sádico com o tacão de ferro repressor está fora de qualquer dúvida. Minha dificuldade está em saber se a postura do juiz federal foi menos repugnante.

Explico-me. Em conversas de corredores pelo fórum, fiquei sabendo que pessoas próximas ao juiz federal o aconselharam firmemente a declinar da competência, isto é, a "tirar aquela bomba de lá o quanto antes". Disseram-lhe ainda que, caso acontecesse um massacre, a culpa não seria dele, e sim dos governos. Minha dúvida, pois, é a seguinte: quem é mais torpe? A besta-fera sedenta de sangue ou o covarde que, podendo fazer algo, vira as costas e deixa a vítima à mercê de seu algoz? O Judiciário está repleto de pessoas pusilânimes, frouxas mesmo, que só encontram forças para defender seus privilégios, e que são incapazes de se indispor com determinados poderes em nome de uma causa que não lhes beneficie. E cheias de complacência consigo próprias, eximem-se de culpa no tribunal da consciência com argumentos ridículos. Mas o que importa? Acaso poderia um juiz corrigir os males do mundo? Ajudar o Pinheirinho só serviria para impedir uma promoção para o TRF, certo?

Retomando a exposição. Logo que se apossou da decisão que declinava da competência, que lhe abria o caminho para despejar a ferocidade estatal sobre a cabeça dos moradores, a juíza estadual convocou novamente a PM. Falou ao comandante que lhe faltara firmeza para cumprir com sua ordem, e que ele não deveria ter hesitado perante a ordem advinda da Justiça Federal.

Pelo visto, ela foi convincente. Nem um acordo firmado entre as partes e nem mesmo uma ordem do TRF de remessa dos autos para a Justiça Federal e nova suspensão da liminar estão bastando para deter a ação brutal da PM. Uma vez tirada da sua jaula, a fera não pode mais ser contida, sobretudo quando pesa sobre ela a chibata ensandecida da juíza.

Eis um breve resumo de toda a imundície em que a ação judicial do Pinheirinho está mergulhada. Não faltou perseverança por parte do Judiciário (mentir, retardar processos e violar a lei) para que a PM pudesse fazer o que está fazendo agora: matar, agredir, saquear e pilhar. É para isso que nossos policiais são treinados. Verdadeiros salteadores que agem a soldo dos cofres públicos contra o povo.

Não obstante, faço questão de realçar, a partir de meu relato, que o sangue não está apenas nas fardas dos policiais. Ele está também no bico dos tucanos Alckmin e Cury. E, claro, está na toga da meritíssima juíza Márcia Loureiro. Esta senhora, assim como os demais, tem a sua quota-parte na catástrofe em curso. É corresponsável, sim, pela condenação de milhares à indigência e por todo o sofrimento contido na ocupação, inclusive no que diz respeito à perda de vidas. Partícipe dos atos cruéis cometidos por uma corja de assassinos, ela deu vida, como ninguém, à fala do professor Marcus Orione: "O direito tem uma função: destruir as pessoas".