quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O papel contrarrevolucionário do romantismo revolucionário

É uma verdadeira tragédia o que acontece hoje com determinadas organizações marxistas (ou com determinados indivíduos que, mesmo não militando em nenhuma organização, reivindicam o marxismo). Mais de uma década depois da queda da URSS, o mundo testemunha, na época atual, uma série de processos revolucionários em diferentes regiões - justamente depois que a burguesia, na pessoa de Fukuyama, declamou o fim da história. E eis que, ao invés de encontrar neste fato uma fonte de renovação das esperanças, o que vemos é que a maior parte dos marxistas rejeita as revoluções em curso. Deparando-se com fenômenos que muitos imaginavam se tratar de coisa do passado, estes "céticos" preferem fechar os olhos à realidade e se manter na sua zona de conforto. Para os reformistas, as zonas de conforto são os governos de plantão supostamente anti-imperialistas, ligados ao povo etc. Para os ultra-esquerdistas, diferentemente, o conforto está no seu permanente isolamento do mundo.

O que vemos, portanto, são duas maneiras diferentes de se negar a existência de revoluções nos dias que correm, ou de se perverter o conceito de tal forma que ele se torne irreconhecível. À direita, os reformistas desdenham a ação das massas a ponto de se imaginar que o mais próximo que se pode chegar de uma revolução seria por meio de reformas governamentais ditas radicais, populares e uma série de adjetivos tão benevolentes quanto vazios. À esquerda, os ultra-esquerdistas sonham com uma revolução que nasce já pronta e acabada, na qual as massas, do dia para a noite, assimilam o programa socialista de ponta a ponta, tomam o poder sem perda de tempo e lutam de imediato pela internacionalização do processo. Qualquer evento menos "audacioso" do que isto não mereceria a alcunha de revolução.

Há que se combater estas duas concepções, as quais se irmanam num erro grosseiro, e que consiste na idealização romântica da revolução. Trata-se da prática de se criar uma imagem idílica e a-histórica do que vem a ser a revolução, servindo-se dos gostos e caprichos pessoais do imaginador em detrimento da história efetiva e material. E para lançarmo-nos a este combate, é preciso compreender, em termos marxistas, o que vem a ser uma revolução, afastando-se os mitos, as confusões e as romantizações que turvam a visão.

A revolução é sempre o ápice da luta de classes. Numa sociedade dividida em classes sociais, sempre há antagonismo, mesmo que de maneira esparsa, reduzida e inconsciente. O trabalhador que, insatisfeito com suas condições de trabalho, reduz seu empenho na produção, mesmo que não o saiba, está fazendo luta de classes, isto é, está reproduzindo de algum modo a relação de antagonismo que mantém com seu patrão. Um trabalhador pode até não saber que é explorado, mas a contradição fundamental da sociedade aparece invariavelmente no seu comportamento, ainda que limitada a uma sensação de desânimo, de falta de sentido naquilo que se faz.

Certamente, o mal-estar de um obreiro é uma manifestação microscópica e extremamente embrionária do antagonismo entre capital e trabalho. Ocorre, porém, que ações espontâneas, não planejadas, trazem em si um embrião de consciência, como dizia Lênin. Entre o mal-estar individual dos obreiros e um movimento grevista, por exemplo, há uma diferença qualitativa, mas há também uma certa continuidade. A greve é uma expressão mais avançada, mais intensa, de um mesmo antagonismo que aparece no desânimo do trabalhador. No fundo, são dois níveis de intensidade na realização concreta de uma contradição social.

No caso das revoluções, temos o nível máximo de intensidade da oposição entre as classes - uma oposição que é dada objetivamente pela estrutura social, e que não depende da vontade dos membros de cada classe. O que diferencia a revolução das demais formas de expressão da luta de classes (passeatas, greves, ocupações, medidas de desobediência civil etc.), pois, é a sua força, a sua intensidade, o que aparece na entrada em cena das massas. O primeiro indício de uma revolução é a ativa presença das massas na vida política de um país.

Em seu ascenso, as massas podem estar apoiadas em organizações de classe ou não. Na Rússia revolucionária, estavam apoiadas nos sovietes de operários e soldados. No Chile de Allende, escoravam-se nos cordões industriais, ou seja, em organismos do movimento operário. Na Argentina do final do século XX, não estavam apoiadas em nada a não ser no peso do número. Só o que se tinha era o poder da multidão, embora tenham surgido algumas organizações de bairro que tenham cumprido um papel não desprezível. Parece óbvio que, nos processos em que há apoio material em organizações de classe, os trabalhadores estão em melhores condições, por mais que não se possa garantir sua vitória de antemão. Isto porque os organismos são a base material sobre a qual se constrói o duplo poder, e sem esta base não se consegue desafiar o poder do Estado.

Mas é claro que a presença das massas nas ruas, por si só, não define uma revolução. É necessário que se verifique nelas uma disposição para ação revolucionárias. Por ações revolucionárias devemos compreender as medidas tomadas pelo povo mobilizado que se chocam com o regime vigente, que se mostram insustentáveis sob o ponto de vista da ordem política. Neste aspecto, o caráter de massa é determinante. Pensemos nas ocupações de terra realizadas pelo MST, por exemplo. Tais ações fazem parte da luta de classes, sendo legítimas e necessárias à organização da classe trabalhadora. Não se poderia, contudo, dizer que são revolucionárias, a menos que se inserissem num contexto de ocupações massivas. Isto se deu na China, particularmente no final dos anos 1940, comprometendo a dominação burguesa exercida pelo regime encabeçado por Chiang Kai-shek.

Para os ultra-esquerdistas, só seriam revolucionárias as ações que estabelecessem a transição rumo ao socialismo. Qualquer coisa menos que isto seria uma mera rebelião popular, uma pequena (insignificante?) explosão de insatisfação. Se as massas, em seus esforços, derrubam um governo, preparam uma assembleia nacional e dividem as forças armadas, estamos diante de abalos importantes no regime, de rupturas institucionais que de modo algum podem ser desprezadas - a não ser para os ultras, que não se contentam com nada menos do que a perfeição.

Em países como Egito, Líbia, Síria e Ucrânia, cada qual com sua peculiaridade (desnecessário frisar como a Ucrânia se distancia politicamente dos demais países mencionados), as massas desestabilizaram o modelo de dominação - e um regime político não é nada mais do que isto: uma certa configuração dos aparelhos de Estado que, à sua maneira, assegura a dominação política de classe.

Pensemos na Argentina do fim dos anos 1990 e do início dos anos 2000. Decerto que não houve nada próximo do socialismo. Todavia, tivemos presidentes caindo em cascata, com direito a fugas de helicóptero. O regime democrático-burguês esteve totalmente transtornado naquele período, incapaz de funcionar em condições sadias de normalidade. Uma situação como esta seguramente é revolucionária, ainda que o socialismo fosse um horizonte distante naquele momento.

Pensemos no que os pedantes ultras, seja como partidários de alguma seita insignificante, seja como analistas (e não mais que analistas) políticos exaltados, fariam diante da revolução de fevereiro na Rússia de 1917. É de se supor que tomariam o evento por uma mera rebelião. A queda do czarismo, para eles, não teria nenhuma importância. Não contentes, provavelmente diriam que o governo provisório não significaria nenhuma mudança real em termos de regime (posso imaginá-los citando o príncipe Lvov no governo provisório!). 

"Ou o socialismo, ou nada!", diz o ultra-esquerdismo. Uma postura de ultimatismo perante as massas que ignora o quanto é importante que elas se coloquem em movimento, já que seus avanços e retrocessos dependem de uma disputa que se dá no processo de mobilização. Bobagem, pensam eles: se as massas derrubam ditadores sem entoar o hino da Internacional, não se pode levá-las a sério, sendo preferível acreditar que, no máximo, ocorre uma rebelião popular. E como as massas não seguem os esquemas fantasiados por eles, cometendo a terrível falta de não desenvolver uma consciência socialista na velocidade que se desejaria, a resposta dada pelos campeões da revolução é o desprezo. Não perdoam a desfeita e menosprezam os fatos - o que não faz diferença, pois como as seitas não são muito dadas a intervir na realidade (é mais fácil viver de polêmicas por escrito), pouco importa a sua avaliação sobre o que se passa.

Em adendo, os ultras também não perdoam as massas pelas escolhas que fazem de suas direções. Com efeito, os sírios cometeram o pior dos pecados quando se serviram das direções burguesas existentes e menosprezaram as seitas propagandistas do outro lado do mundo, e o mesmo se poderia dizer dos egípcios e dos ucranianos. As massas, apesar dos protestos das seitas, lutam com o material que está à sua disposição, o que vale tanto para armamento quanto para direções políticas. Todos estes fatores são colocados pela realidade material, e não se pode plasmá-los por atos de vontade. Seria melhor se, na Síria, os rebeldes tivessem equipamentos mais sofisticados para se defender e para lutar contra Assad? Naturalmente, do mesmo modo que seria mais adequado que tivessem uma direção revolucionária dedicada à causa do socialismo.

Muito bem. Já que a realidade caprichosamente negou às massas as condições ideais para lutarem pelo socialismo, o que fazer? Os reformistas e os ultras não têm dúvida: seria melhor se ficassem em casa. Para os ultras, se não for para tomar o poder e instaurar uma planificação democrática de toda a economia, não vale a pena ir às ruas e se sujeitar às investidas das direções burguesas. E para os reformistas, é claro, as massas sequer deveriam ter se movimentado, a não ser que fosse para prestigiar o comício de algum iluminado candidato do povo, alguém que pudesse fazer uma "revolução" em seu nome, agindo por mandato e no interior da institucionalidade. Não por acaso, o PSOL fala numa "revolução bolivariana" ao se referir ao processo que compreende o período que se estende da ascensão de Chavez à atualidade. Quanta licenciosidade no uso de uma palavra! Pela mesma lógica, há de se tomar por "socialismo" o modelo econômico venezuelano. Sim, um socialismo muito especial, calcado na propriedade privada, no lucro, no mercado e, por certo, nas Forças Armadas!

A esta altura, os reformistas e os ultra nos atirarão à face o caso da Ucrânia, onde grupos de extrema-direita ocupam papel de algum destaque e se candidatam à direção do movimento. Diante deste fato, dizem, é melhor torcer pela desmobilização, orar para que as massas se recolham aos seus lares, retomem o cotidiano, para que tudo seja como antes. Não seria conveniente expor o povo ao assédio de forças fascistas e nazistas.

Que os reformistas queiram oferecer poltronas às massas como saída, não surpreende. A novidade está em ver este chamado nas posições dos ultra-esquerdistas. Que improvável casamento entre forças tão díspares! Deixem-me dizer o que os une: a descrença nas massas.

Num texto anterior, criticando o personalismo embutido nos chavistas, critiquei a descrença que eles mantêm com relação às massas, e que se expressa num bárbaro cretinismo eleitoral: a ação direta das massas só é bem-vinda nas manifestações pró-governo. Aos sindicalistas insatisfeitos, resta a repressão, e sobre isto os chavistas silenciam (ou citam a repressão soviética à rebelião de Krondstadt, como se um evento completamente desconexo como este desse aos bonapartes do planeta uma carta branca para reprimir seus trabalhadores). Pois pasmem: os ultras partilham da mesma desconfiança no poder da classe trabalhadora!

Os ultra-esquerdistas esperneiam porque as massas ucranianas trazem em suas fileiras setores de extrema direita, denunciando o perigo que estes grupos representam. É verdade que eles representam um perigo, mas devemos lembrar os incorruptíveis revolucionários que as massas são o sujeito de qualquer revolução, e que sem elas não se vai a lugar algum. Não que elas sejam perfeitas! Elas cometem erros, assim como as direções (e mesmo as direções revolucionárias) cometem erros. Não se trata, portanto, de idealizá-las, mas de saber que a única esperança de transformação radical encontra-se nelas, e em nenhum outro lugar.

Devemos, pois, torcer para que elas se lancem às ruas, enfrentando o risco de se deixarem enganar por direções reacionárias? Bem, se os ultras esperam que uma revolução seja um processo sem risco, no qual o êxito esteja garantido à priori, então o mais provável é que se desapontem.  Deveriam saber que os marxistas não lutam pelo socialismo por crerem na certeza deste resultado - apenas os dogmáticos e os fanáticos pensam assim, e isto os conduz a desastres. Os marxistas lutam porque o socialismo é possível, e porque vale a pena, apesar de todos os riscos de fracassarmos.

Lamentamos dar aos ultras a má notícia de que a luta de classes não se realiza sem riscos. E temos uma outra ainda pior: toda revolução é acompanhada por medidas de contrarrevolução, e esta contrarrevolução não se limita à repressão estatal. Por mais que, nos pueris devaneios ultra-esquerdistas, as revoluções marcham com galhardia contra um inimigo que não resiste, e que não se serve de artimanhas mil para salvar a própria pele, infelizmente o mundo real não oferece tais comodidades.

Não é de admirar que bandos fascistas saiam às ruas na Ucrânia durante o ascenso. O que é de admirar é que isto cause histeria em quem se diz marxista. Os fascistas são agentes da contrarrevolução, ainda que agentes "privados", "paraestatais". Nas mobilizações, utilizam-se da confusão que existe nas massas acerca do espectro político para jogá-las contra as organizações de esquerda. Aproveitam-se do histórico de crimes do stalinismo contra as nacionalidades para associar o socialismo à experiência soviética e aos desmandos atuais de Putin. Como peças da contrarrevolução, eles agem na revolução (no interior de suas fileiras) e ao mesmo tempo que ela ocorre. Uma pena que não sigam os esquemas "teóricos" dos ultras, todos impecáveis, nos quais a direita é elegante o bastante para não se infiltrar no movimento de massas.

Mas não fujamos à questão mais palpitante. A extrema direita tem sido bem sucedida? Em parte sim, mas os rumos dos acontecimentos estão muito além do seu controle, e somente um cego não enxergaria que o curso do processo é majoritariamente progressivo. A pauta das mobilizações secundarizou a questão da União Europeia ao priorizar a queda do governo, e hoje se esboça um mecanismo de duplo poder, no qual se prevê uma assembleia nacional capaz de vetar nomes do novo governo, fazendo-o a partir de critérios democráticos - um deles, inclusive, exclui as 100 pessoas mais ricas da Ucrânia!

"Aí está!", bradará o ultra-esquerdista: "barrar os 100 mais ricos da Ucrânia não ataca o capitalismo!". Somos forçados a concordar e a ceder a este valente radical todos os créditos de tamanha descoberta! Sim, incorrigível filisteu, é certo que não estamos assistindo a uma transição socialista em Kiev, mas as massas seguiram um trajeto progressista em suas reivindicações, algo muito distante do levante fascista divulgado com tanto alarmismo.

É óbvio que existe o risco de que a extrema direita ganhe força e espaço. Mas se acreditamos que as massas devem fazer a revolução, e que para tanto devem amealhar experiência, então é preciso que continuem em luta, e que se corra o risco. Recolhidas em sua vida cotidiana, não aprenderão nada - a não ser que os ultras façam uma providencial viagem à Ucrânia e ensinem marxismo ao povo, educando-o meticulosamente, de modo que ele jamais erre, assim como os ultra-esquerdistas nunca erram! Claro, não erram porque não se atrevem a aplicar suas orientações no movimento... Mas por que se contaminar com o mundo real?

E se o risco do fascismo é tão preocupante, que saibam os ultras que a melhor forma de diminui-lo é a disputa pela direção do movimento, e não a sua condenação. Para quem está de fora - e isto sucede tanto com as seitas quanto com os partidos verdadeiramente atuantes na realidade -, ao menos se pode pautar consignas internacionalmente, convocar os trabalhadores ucranianos a acreditarem nas suas próprias forças e a não confiarem nem no governo provisório e nem na extrema direita. É pouco, certamente, mas é melhor do que imputar às massas um programa fascista. Mesmo que os fascistas fossem a direção do movimento (o que não é verdade no momento, apesar de sua influência considerável), não se poderia confundir a base com o grupo dirigente. Quem é incapaz de separar as bases de suas direções, diga-se logo, deve ser consequente e renunciar à disputa pelos corações e mentes do proletariado brasileiro, ainda preso à frente popular. Aliás, se abrir mão desta disputa no Brasil seria criminoso, o crime seria infinitamente maior num país onde o povo literalmente colocou de joelhos um destacamento da tropa de choque.

Abandonemos agora a gélida Kiev e passemos ao ensolarado Cairo, com sua efervescente praça Tahrir. No Egito, tivemos 14 milhões de pessoas nas ruas! 14 milhões! Será que os ultras e os reformistas simpáticos a Mubarak e Morsi fazem alguma ideia do que significa esse número? Decerto que não, pois só enxergam as garras do exército aprisionando o representante da Irmandade Muçulmana - como se a maior mobilização de massas da história pudesse ser um elemento indiferente na caracterização do ocorrido!

Sejamos didáticos para quem insiste no menoscabo para com as massas: fora da sede do governo, 14 milhões de pessoas protestando contra o governo; dentro da sede do governo, um presidente acuado. Sabemos que a força política mais importante no Egito é o exército, e isto desde Nasser, um bonaparte que desenvolveu em torno de si um regime ditatorial que sobreviveu à sua liderança pessoal. O que esta força dirigente faz? Retira ela mesma o governante sitiado e inicia uma transição controlada ou permite que as massas façam as mudanças a seu bel-prazer? Quem tiver a menor noção do que vem a ser o termo "razão de Estado" poderá entender que os militares derrubaram Morsi para salvar o regime, e que só o fizeram porque não tinham meios de dissuadir 14 milhões de pessoas pela força.

Quem venceu? As massas ou os militares? Se a luta de classes fosse um jogo de lógica binária, seria mais fácil responder a esta pergunta. De qualquer maneira, é certo que os militares se saíram bem pelo fato de terem preservado o regime. Quanto às massas, tiveram também uma vitória, por mais limitada que tenha sido. O simples fato de se reunir 14 milhões de pessoas para se protestar contra um governo burguês é positivo, negá-lo seria pura birra ultra-esquerdista. E também a queda do governo foi positiva, muito embora tenha sido distorcida pela ação do exército.

Infelizmente, no topus uranus das seitas e de seus partidários, não se concebe que revolução e contrarrevolução são vetores que atuam ao mesmo tempo. Talvez estes ultras devessem mostrar suas ideias infalíveis aos militares egípcios e lhes encaminhar um pedido: "meus caros, tenham a bondade e a gentileza de tomarem suas ações contrarrevolucionárias somente depois que as massas tomarem medidas revolucionárias; por favor, não se antecipem, saibam esperar com paciência a sua vez de jogar (como se a luta de classes fosse um jogo de turnos), ou então ficaremos demasiadamente confusos em nossas elaborações metafísicas!".

Em suma, vimos que a incompreensão sobre os processos revolucionários é fonte de enormes equívocos, e que esta incompreensão orbita em torno de uma visão romântica que se tem da revolução. As revoluções são processos históricos com uma lógica própria, e que não se dobram aos anseios daqueles que querem realizá-las. Trotsky afirmava que a transformação revolucionária das sociedades efetiva-se com os homens e mulheres tais como eles existem, e é no calor dos acontecimentos que eles mesmos se transformam e avançam em suas consciências. Contra isto, os ultra-esquerdistas agarram-se no idealismo, prontificando-se a participar de uma revolução quando as massas despertarem já devidamente preparadas. Enquanto isto não acontecer, que não os incomodem com rebeliões parciais! Tal postura, sejamos francos, é conservadora, e cumpre um papel contrarrevolucionário.

Mostra-se deveras lamentável a incapacidade teórica daqueles que, diante de ações revolucionárias por parte das massas e de agudas crises de regime, dão de ombros aos acontecimentos, ou resumem tudo a manobras da direita. Resta constatar apenas que, quem não sabe diferenciar as obras da revolução das obras da contrarrevolução, de fato, não está apto a contribuir para a causa da emancipação humana.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Marxismo x chavismo

"A emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora", dizia Marx. Esta frase deveria ser um norte para a esquerda, não é mesmo? Pois é, deveria...

É claro que nem toda a esquerda é marxista. Na verdade, o marxismo hoje é minoritário na esquerda, embora boa parte dos que se inserem nesta posição do espectro político, não obstante, reivindique para si a teoria do autor de "O capital".

No Brasil, particularmente, não faltam indivíduos e correntes políticas que prestam suas homenagens a Marx no discurso e que, sem qualquer tipo de crise de consciência, adotam o programa e os métodos da burguesia. Nunca ocorreu a certas pessoas que defender o socialismo, de um lado, e apoiar governos burgueses, de outro, é um contrassenso - e aqui faço questão de dizer contrassenso, pois não faltarão espertalhões decididos a buscar na dialética, mais precisamente na categoria da "contradição", um salvo-conduto para a incoerência e o oportunismo.

Pretendo discutir nestas linhas a distância que separa alguns setores da esquerda de um básico postulado da teoria marxista, e que consiste na tese da autoemancipação do proletariado. O motivo que me leva a fazê-lo é a necessidade de criticar os idólatras de determinados governos latino-americanos.

Para começar, quero deixar claro que, quando falo em autoemancipação do proletariado, não incorro em nenhuma concessão teórica e política aos anarquistas e autonomistas de plantão. Entender que a classe trabalhadora pode libertar-se do jugo do capital, e que só pode fazê-lo por suas próprias mãos, em nada afasta a exigência de direções no movimento de massas - até porque as direções simplesmente se formam, queiram os autonomistas ou não. Elas podem ser improvisadas e débeis, ou podem ser estruturadas e dotadas de experiência na luta de classes. Quem verdadeiramente deseja a vitória do proletariado, parece-me, deve inclinar-se para a segunda opção.

As direções, e aqui me refiro a partidos, são as forças políticas que possuem um projeto para a sociedade, que se organizam para vê-lo implementado e que se enveredam nas disputas do poder e da luta de classes. Está claro que, com esta significação, o termo "partido" extravasa o sentido pobre que a ele se costuma atribuir. Nesta ordem de considerações, por exemplo, o Movimento 26 de Julho, antes de se converter em Partido Comunista Cubano, já era um partido. Até mesmo o MST, pasmem, é um partido (não creio que tenha sido assim nos primórdios), diferentemente de outros movimentos sociais que se restringem a um papel de "grupos de pressão" em torno de uma causa específica. O que diferencia, essencialmente, o MST de outros movimentos sociais é o fato de ele ser voltado para um programa destinado à sociedade como um todo (um programa reformista, "democrático-popular"), e que vai além das reivindicações imediatas de reforma agrária.

E mais: as direções são parte das classes sociais. Se um partido do proletariado assume a direção do movimento de massas (e isto quer dizer apenas que as massas preferem sua linha política e que reconhecem as suas figuras públicas como referências legítimas), daí não se infere que a classe esteja sendo de alguma forma alijada do processo. Pelo contrário, é o protagonismo dela que alça à direção um determinado partido - e é claro que as características do partido dirigente terão a sua influência no curso dos acontecimentos. Daí a importância de se debater modelos de organização, mas não se deve ou não haver organização. Para o marxismo, o partido é uma forma organizativa fundamental, e mesmo Rosa Luxemburgo - transfigurada, de modo injusto e bisonho, numa espécie de referência anarquista por pessoas hostis aos leninismo - partilhava desta concepção. Os simpatizantes do anarquismo e do autonomismo que me desculpem por desapontá-los, mas a Liga Spartakus, fundada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, nada tinha de "horizontal" (no sentido pré-político e pós-moderno que se dá a esta palavra), por maiores que fossem as polêmicas com o bolchevismo.

Isto posto, está claro que o marxismo defende que o proletariado, armado com uma direção revolucionária forjada no movimento de massas, deve tomar para si os rumos da história e por termo às mazelas do capitalismo. Muito bem. Algum marxista discorda? Dificilmente discordará abertamente desta formulação. Todavia, muitos dos que assentiriam com a mencionada formulação, na prática, apostas suas fichas em determinados representantes eleitos que gozam da simpatia de amplos setores de massas.

Não é o caso de entrarmos num debate sobre o Estado burguês e o regime democrático burguês. O bom marxista sabe que as instituições do Estado, em última instância, dedicam-se a reproduzir a sociabilidade capitalista e, portanto, a assegurar o domínio da burguesia sobre o proletariado. Mas este bom marxista, mesmo ciente desta realidade, e de modo algum questionando-a (ou talvez questionando de modo sutil, falando novamente em contradições e mais contradições...), está pronto para abrir determinadas exceções. "Sim, é verdade, o Estado e o regime são burgueses, mas há determinados governos que, amparados nas e pelas massas, avançam, acumulam forças, defendem o povo etc. etc. etc.".

É mais ou menos assim que se operam, nestas mentes pseudomarxistas, os milagres de alguns governos latino-americanos. Quero dar maior destaque ao fenômeno do chavismo, dada a palpitante conjuntura da Venezuela.

Há dois tipos de defensores do chavismo: aqueles que dizem que a Venezuela é socialista ou caminha para tanto, de um lado, e aqueles que dizem que o governo, mesmo nos marcos do capitalismo, é progressista, está com o povo, acolhe os pobres para protegê-los dos ricos etc. Os primeiros, sinceramente, não podem ser levados a sério. Quem acredita que a Venezuela passou ou passa por algum processo anticapitalista está pronto para ser levado ao hospício mais próximo. A grande polêmica deve ser travada com os chavistas do segundo tipo.

Os chavistas do segundo tipo, em sua maioria, consideram-se marxistas. Supostamente, partem do pressuposto de que "a emancipação da classe trabalhadora deve ser obra da própria classe trabalhadora". No entanto, agarram-se ao governo venezuelano com todas as suas forças, tomando-o como uma tábua de salvação e, sempre que possível, prestando honras ao falecido Chávez.

Se perguntarem ao um chavista sobre uma determinada medida que traga algum benefício imediato aos trabalhadores, ele prontamente dirá que se trata de uma dádiva generosamente concedida ao povo. Não há luta de classes, não há conquistas transitórias que resultam de mobilizações. Tudo orbita em torno da boa vontade do líder. Ou caso reconheça o papel das lutas, proporá que o governante encarna as conquistas.

O fato é que, para boa parte da esquerda, é muito mais cômodo agarrar-se a um messias, um salvador. Por mais que se concorde com a frase de Marx, não há nada tão encantador, para essa gente, como ver um sujeito de boina e coturno (um verdadeiro fetiche) gesticulando e esbravejando (não mais do que isso) contra o imperialismo, as elites etc. Muito bonito (permitam-se excluir os trajes militares desta estética de esquerda que se criou), mas é uma pena que nada disto sirva para romper com a dominação imperialista e expropriar a burguesia.

Para ser justo, nem sempre a esquerda personalista segue o primeiro orador fardado que aparece. No Brasil, por exemplo, há "marxistas" que se rendem ao "charme" de figuras civis como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Destes, o último foi o mais próximo que tivemos de um governo reformista. Os outros dois foram de direita, e isto deveria ser óbvio, mas como resistir à altivez de verdadeiros "estadistas"? Inexcedível indigência teórica desta esquerda que, tragicamente, não é muito dada aos estudos teóricos, sendo superada apenas, em ignorância, pela direita tradicional. No mais, quando se toma o PT por esquerda, qualquer grupo que não seja fascista ou protofascista pode ser enquadrado como tal, tamanha a licenciosidade emprestada ao conceito.

Tornemos ao chavismo. Eu diria que Chávez foi uma espécie de Getúlio Vargas venezuelano, mas numa época em que há menos margens de manobra para as políticas dos Estados nacionais, ou seja, em que a autonomia relativa dos Estados é menor, sobretudo nos países semicoloniais como a Venezuela. Assim como Vargas, Chávez chega ao poder num contexto de divisão das classes dominantes e de agitação no seio das classes dominadas. Cenários assim, em regra, desembocam naquilo que se conhece por bonapartismo.

Há momentos em que as classes dominantes não logram estabelecer um mínimo de harmonia entre si para formar um bloco estável de dominação. São instantes de fragilidade que podem, inclusive, caracterizar uma situação revolucionária, caso outros fatores se combinem. Todavia, se as massas não estão em condições de fazer uma revolução, e se o impasse entre "os de cima" permanece, pode ser que surja um "árbitro" das classes dominantes para administrar a situação.

O "árbitro" é o bonaparte, uma figura que, apesar de ser alheia às disputas fracionais, possui grande interesse no cenário político (ou melhor, na ordem das coisas). A autoridade política do bonaparte repousa não nas classes e frações (já que se trata justamente de um "tertius"), e sim no prestígio perante setores de massa. Não foi por acaso que Marx fundou a ideia de bonapartismo a partir de Napoleão III, que dissolveu o parlamento francês e, em seguida, instituiu o sufrágio universal. O bonaparte reporta-se diretamente às massas, nelas se apoiando para lidar melhor com as frações da classe dominante em luta fratricida (desconfio que, depois desta descrição, já existam "marxistas" começando a simpatizar com Napoleão III...).

A ação do bonaparte é o último recurso da ordem para conservar as condições necessárias às relações de produção, e é muito sintomático que, na Venezuela, o líder bonapartista tenha saído da caserna. Servindo-se de sua popularidade, o bonaparte dialoga com as massas para apaziguá-las, para que se acalmem enquanto as classes dominantes resolvem suas diferenças internas. E quando elas não acatam a palavra do chefe, utiliza-se da violência nua e crua.

Na Venezuela, há setores de massa que se apegam ao governo, notadamente as camadas mais pobres, beneficiadas por programas sociais foquistas à la FMI, e parte do sindicalismo, que foi cooptada politicamente. Quanto ao sindicalismo alternativo e insubordinado, este possui um longo histórico de repressão sob o chavismo.

Contra o chavismo, insurge-se uma pequena burguesia debilmente organizada e dirigida por um setor burguês - o que não quer dizer que os governos chavistas sejam "antiburgueses". Os investimentos do imperialismo na Venezuela andam muito bem, obrigado, e a PDVSA segue com os seus lucros. Não se deve olvidar, aliás, que o capital de Estado é uma das formas de propriedade do capital, de tal sorte que é um erro tremendo imaginar que a estatização de empresas seja um passo em direção do socialismo. Sem controle operário e planificação econômica, a empresa estatal apenas substitui a figura do burguês por um burocrata.

Num contexto como este, a política condizente com o marxismo só pode ser a da organização política independente junto à classe trabalhadora. Nem apoio ao chavismo, nem apoio à oposição de direita. Insistamos: "A emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora".

Mas para que apegar-se a este "preciosismo" quando se pode jurar lealdade e amor eterno a um herói fardado, não é mesmo? Como negar suporte a Maduro, herdeiro direto do "comandante"? Esta esquerda personalista sistematicamente subestima o papel das massas, imaginando (mesmo que inconscientemente) que elas só servem para votar no chavismo ou para ir às ruas em defesa do governo. A importância de sua auto-organização acaba sendo totalmente esquecida. Afinal, o que é a auto-organização das massas perto da imponência de uma divindade "bolivariana" com seu cavalo e sua espada?

E é mesmo curioso que os idólatras chavistas sequer desconfiem do charlatanismo deste discurso "bolivariano". Não há nada mais típico do reacionarismo do que prometer ao povo as "glórias" de um passado que se usa e abusa com tanta licença poética.

Aos ativistas que depositam esperanças honestas no chavismo, convido-os a refletirem sobre a seguinte questão: diante da crise social da Venezuela (não, prezados fanáticos, a Venezuela não é o paraíso na Terra), qual sujeito social pode apresentar uma saída? É óbvio que a direita tradicional, anterior ao chavismo, não é a resposta. Tampouco Maduro e o PSUV (um partido criado em torno de Chávez), que estão no governo e se mostram incapazes de satisfazer as necessidades mais sentidas da população.

Construir um campo alternativo não é tarefa fácil. É muito mais fácil transferir a Maduro uma procuração com plenos poderes para salvar o povo do sistema no qual ele opera como engrenagem-chave. É muito mais cômodo furtar-se à discussão sobre o bonapartismo e jurar a si mesmo que o sucessor de Chávez é um enviado dos Céus que proverá a todos. Contudo, a elaboração marxista não pode folgar com as comodidades almejadas pelos descrentes no poder das massas. É claro que também é dado aos chavistas "oficializar" sua ruptura com o marxismo, para que possam dizer simplesmente que se contentam com as "misiones", com discursos inflamados e com os adjetivos que seu líder atribui aos presidentes dos EUA. Seria uma saída honesta, pelo menos. Indigente, mas autêntica, sem associar o marxismo a semelhante rebaixamento de horizontes.

É preciso ao menos esboçar uma explicação sobre o motivo que leva os chavistas e afins ao culto à personalidade. Em minha opinião, para além de insuficiência teórica, trata-se de uma profunda descrença no proletariado. Quanto mais se duvida que a classe trabalhadora pode chegar ao poder, tanto mais se projeta num indivíduo o papel redentor. Resta imaginar que algum paladino valente assuma para si a causa do povo e faça a revolução (ou "algo próximo disto") em nome do povo. Como ele não consegue, há dois caminhos: apelar, fingindo que o socialismo está em curso, ou imitar Cândido, personagem de Voltaire, afirmando-se que este é o melhor dos mundos possíveis. Não nos enganemos, portanto: o chavismo é conservador. Por ele se pode bradar contra a direita clássica, mas não se pode pensar o proletariado como sujeito potencialmente revolucionário. Para os pequeno-burgueses de esquerda que se dão por satisfeitos em se diferenciar da "classe média" venezuelana, branca e reacionária, já está de ótimo tamanho. Agora, quando se pretende conspirar contra o capitalismo, é preciso fazer um pouco mais. É preciso pensar dialeticamente, e não com o estômago. É preciso ler a realidade sob o prisma das classes sociais e das relações de produção, e não meramente sob o prisma do mapa eleitoral e das faixas de renda. É preciso, inclusive, cogitar a destruição do Estado burguês, e para esta tarefa não se pode contar com a cúpula das Forças Armadas, mesmo que ela fabrique duzentos Hugos Chávez.

Obviamente, a revolução não está na ordem do dia na Venezuela. No entanto, dado que não se pode superar o capitalismo sem uma revolução, e dado que a superação do capitalismo é o objetivo dos marxistas, somos obrigados a pensar em coisas assim, mesmo que de um ponto de vista puramente estratégico. Mas para os chavistas só há uma estratégia: eleger e reeleger seus chefes. Qualquer elaboração política que passe ao largo deste cálculo é rechaçada. Isto tem um nome: cretinismo parlamentar.

Além disso, o personalismo chavista não deixa de se reportar a uma concepção burguesa de mundo. Hegel não disse que Napoleão era o espírito do mundo montado num cavalo? Ora, os chavistas pensam de modo análogo no que diz respeito às lutas sociais. Os impasses enfrentados pela sociedade, nesta visão, só podem comportar uma resposta individual. E quando se pensa no destino da população em conjunto, a resposta é a aposta num indivíduo. Uma péssima aposta: os chavistas sequer suspeitam de que Chávez e Maduro são muito mais o dique do que o desaguadouro do movimento de massas.

Já passou da hora da esquerda superar o culto à personalidade, esta ideologia reacionária que só serve para desarmar a classe trabalhadora. O personalismo é tão miserável que chega a ser pré-político: abre-se mão de uma análise real da conjuntura e da estrutura social em nome dos traços de personalidade de um dado governante, como se suas intenções valessem mais do que seu papel efetivo nas relações sociais enquanto agente de Estado. Ou colocamos as coisas em termos de política, orientando nossas ações por programa, tática, estratégia e princípios - sempre com foco nas massas e na organização classista - , ou seremos reféns do primeiro bufão que se proclamar como libertador da pátria. Indigna condição de uma esquerda que abre os braços para o bonapartismo, tomando-o por aliado, quando não por guia! Autoemancipação revolucionária das massas ou messianismo laico, eis a disjuntiva.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Entendendo o obscurantismo

"Viva la muerte, abajo la inteligencia", dizia o general franquista Millán Astray. Eis uma brutal síntese do fenômeno conhecido como obscurantismo, e que se apresenta de diversas maneiras na vida social.

Não há nada tão desesperador como ler comentários de internet sobre temas como beijo gay, violência policial, segurança pública, direito de manifestação e direitos humanos. É como ingressar numa sessão de tortura psicológica, numa terapia de descrença na humanidade. Eis o tipo de sensação que se tem.

Por que o termo obscurantismo? Trata-se de um contraste com a tradição iluminista que envolveu as revoluções burguesas e floresceu ao longo do desenvolvimento do modo de produção capitalista, em sua luta ferrenha contra os resquícios de feudalismo nos séculos XVII e XVIII na Europa.

Em sua incursão revolucionária, a burguesia opôs a luz da filosofia e da ciência modernas às trevas da Idade Média. Contra o absolutismo e os privilégios do Antigo Regime, a classe ascendente reivindicou as liberdades democráticas que formam o que hoje se entende por Estado de Direito. Neste processo, forjou-se uma forma política estatal que se adequava aos imperativos das relações de produção capitalistas, mas que cumpria um papel progressista na história.

No campo da filosofia política, o grande legado das revoluções burguesas foi o liberalismo político, se compararmos, é claro, com as teorias absolutistas de Jean Bodin e companhia. Este liberalismo, pretendendo sepultar o passado feudal, trouxe avanços civilizatórios inegáveis para a época, como a defesa da igualdade perante a lei, as garantias individuais contra abusos das autoridades, o direito de defesa nos processos, o Estado laico etc.

É evidente que, hoje, seja nas periferias das metrópoles brasileiras, seja nos protestos de rua, estas garantias do Estado de Direito tornam-se letra morta. No entanto, é positivo que se possa qualificar, ainda, que determinadas ações por parte do Estado são ilegais, mesmo que a responsabilização dos agentes seja de difícil verificação.

O que importa, historicamente, é que o período das revoluções burguesas consagrou determinados direitos civis e políticos que, no seu conjunto, moldam aquilo que hoje se chama democracia - uma democracia liberal e burguesa, mas diferente de um regime ditatorial ou totalitário.

Mas ocorre agora que os tempos são outros. A sociedade burguesa já não produz pensadores como Voltaire, Rousseau e Kant. Vivemos na época de decadência do capitalismo, uma época em que este sistema social, longe de impulsionar a humanidade rumo a patamares civilizatórios superiores, propicia o exato oposto: a barbárie.

A decadência do capitalismo enquanto modelo civilizatório é visível na mudança do discurso dominante nas sociedades burguesas. Num primeiro momento, de ascensão, o mote era "liberdades até o limite da ordem" - e não nos iludamos: o Termidor foi a prova inequívoca de que mesmo a antiga burguesia progressista prezava muito mais por seus interesses econômicos do que pela participação popular na vida pública. Hoje, momento de barbárie, o mote é outro: "ordem". E ponto final. Já não se defende as liberdades democráticas.

Daí o termo obscurantismo. Os marcos da civilização capitalista sob os quais ela se afirmou contra o feudalismo repousam num discurso filosófico iluminista; atualmente, porém, a "direita", defensora do capitalismo, não reivindica a laicidade do Estado, o direito de defesa processual e as garantias gerais do indivíduo contra o Estado. Aliás, não só não reivindica como as despreza, cuspindo naquilo que diferencia o Estado de Direito do Antigo Regime feudal.

É neste sentido que um importante setor direitista caracteriza-se como pré-iluminista, como hostil aos fundamentos daquilo que a própria burguesia chamou da Idade das Luzes. Eis aí o reacionarismo na sua forma mais quintessenciada: o anseio de retorno a situações anteriores às realizações do liberalismo político.

Curioso notar que, nos séculos XVII e XVIII, o liberalismo era postulado coerentemente na política e na economia. Mercado e democracia liberal faziam parte de uma mesma fórmula, coisa que já não se vê ultimamente. Basta o mercado.

Nossa direita contemporânea só fala em liberdade para se opor àquilo que entende por comunismo. Sua insuperável ignorância, tragicamente, a impede de compreender que o comunismo, tal como defendido pela teoria marxista, jamais existiu, e que experiências como a URSS stalinista não podem falar em seu nome. Nenhum direitista atreveu-se a estudar a crítica marxista da União Soviética e de outros regimes aos quais se atribuiu a alcunha de "socialismo real".

E quando fala em comunismo, esta direita associa este temível fantasma ao PT, fazendo-o por motivos diferentes. Há aqueles que são obtusos o bastante para imaginar que o PT conspire contra o capitalismo, mesmo que a burguesia inunde suas campanhas eleitorais de dinheiro, e mesmo que este partido, em retorno, adote um programa neoliberal (por mais que os apologistas lancem mão de eufemismos como "pós-neoliberalismo", "neodesenvolvimentismo", "social-liberalismo" etc.); há outros que, olhando para o passado, notam que o Partido dos Trabalhadores, certa feita, foi um viveiro de correntes socialistas mais radicais, temendo uma espécie de retorno às origens; e há, por fim, os que deliberadamente usam da imagem do PT para desmoralizar a esquerda como um todo. O senso comum, mesmo não associando o PT ao comunismo, toma-o por um partido de esquerda, de tal sorte que a maior parte dos seus erros são creditados ao espectro ideológico em que ele supostamente se insere.

Mas tornemos ao obscurantismo, esta negação das luzes burguesas do pretérito. Devo advertir desde logo que não tomo os obscurantistas por adversários dignos. Digo isso pelo seguinte: uma vez que vivemos numa sociedade capitalista, o mínimo de padrão civilizatório que se pode exigir num debate é aquele em que se fundamenta historicamente o capitalismo. Retroceder para aquém da civilização capitalista é algo que deve estar fora de cogitação. Por isto, creio-me no direito de não considerar como respeitáveis as posições que se mostram pré-iluministas.

O que isto significa concretamente? Significa que a defesa do mercado, da propriedade privada e da lógica do lucro, por exemplo, é respeitável em termos civilizatórios, por maiores que sejam as discordâncias. No entanto, quando se afirma que a culpa do estupro é da mulher, que gays e lésbicas são doentes, que os negros devem sofrer porque um suposto antepassado bíblico ficou nu na frente do pai etc., a situação muda de figura. Todas estas afirmações ferem postulados básicos, e burgueses, de igualdade formal e laicidade do Estado. Quer-se com elas discriminar negativamente  um grupo, ou seja, impor-lhe uma condição social inferior, oprimi-lo e humilhá-lo, o que é inaceitável.

Quando vemos o que se passa no caso do jovem que foi mutilado e amarrado numa via pública do Rio de Janeiro por um bando de "justiceiros", temos mais uma hipótese deste tipo, e até pior. Chegamos ao ponto em que determinados membros de nossa sociedade burguesa celebram um evento no qual se nega aquilo que é essencial ao Estado burguês: o monopólio do uso legítimo da força física.

Este monopólio deve-se, historicamente, à luta contra o poder feudal; para que a burguesia pudesse fazer valer seu capital e suas mercadorias contra os feudos, era preciso destruir os aparatos locais de repressão e julgamento; era necessário aniquilar os poderes particulares dos senhores feudais e fundar uma autoridade única, perante a qual todos são cidadãos formalmente indistintos, para que a igualdade formal do mercado pudesse realizar os mecanismos capitalistas de exploração da força de trabalho.

E ocorre que, em pleno século XXI, resiste ainda um ranço saudosista com relação à época anterior ao Estado moderno capitalista, à época da justiça privada! É surpreendente como estes adoradores hodiernos do capitalismo ultrajam a memória do velho Kant, notável filósofo burguês, entusiasta da construção de uma sociedade civil no sentido liberal mais pleno!

Hoje já não temos Kant, nem Voltaire e nem Rousseau. A burguesia nos oferece mentes de qualidade deveras inferior, dando testemunho da degradação geral do sistema que a nutre. Em contraste com os apelos de tolerância vindos de um Voltaire, temos agora a sede de sangue de uma Rachel Sheherazade, o ódio nada cristão de um Marco Feliciano e os delírios de um Jair Bolsonaro. Contudo, não são estas figuras medíocres que preocupam, e sim a sua base social.

Se Rachel Sheherazade é âncora de um telejornal, não é simplesmente por suas boas relações com seu patrão, muito menos por seu talento inexistente (desde Datena, admite-se o termo "jornalista" para qualquer bufão capaz de vomitar lugares comuns e barbaridades genéricas). Apresentadores desta estirpe alimentam o sentimento de medo de uma burguesia débil, frustração de uma pequena burguesia irremediavelmente confusa e de angústia de alguns setores desorganizados do proletariado.

De todas estas classes, destaca-se a pequena burguesia e sua relação de "amor não correspondido" com o capitalismo: estes humildes proprietários ou empreendedores não entendem que o modo de produção capitalista funciona para o grande capital, não para o pequeno. Por mais que idolatrem os valores burgueses (a propriedade, a exploração do trabalho, o dinheiro, o individualismo), jamais terão, sob tal forma de sociedade, a segurança econômica que almejam.

A esta pequena burguesia se unem alguns setores do proletariado que, por força da divisão entre trabalho intelectual e trabalho material, e por seu pertencimento ao primeiro domínio, julgam-se superiores a seus irmãos proletários. Unem-se num vale de lágrimas e lamentações. Os pequenos lojistas e os donos do próprio escritório, assim como os carreiristas do mercado de trabalho intelectual, nutrem uma fé muito sincera pelo capital. Tragicamente, o ingrato não lhes retribui os votos, de tal sorte que a prosperidade individual torna-se cada vez mais difícil. O capitalismo, repito, é o jogo do grande capital, não há lugar ao sol para os pequeninos. Mas eles não entendem e, revoltados, projetam a culpa de suas desgraças nas forças que se opõem aos seus valores.

É o que explica a fúria incontrolável de alguns destes indivíduos contra o comunismo. "Se as coisas vão mal", pensam, "não é porque o capitalismo, o sistema existente e operante, deixa de contemplar a todos. É porque existem seres perversos que se ocupam de pervertê-lo e até mesmo (que horror!) de conspirar contra ele". E como no Brasil não tivemos aquilo que se acusa de comunismo, resta descontar em quem mais se aproxima simbolicamente. Escolheram o PT como bode expiatório por conta de seu passado, mas seus serviços à burguesia são tão generosos que, atualmente, só se consegue estigmatizá-lo a partir de teorias ridiculamente conspiracionistas. Mas o estigma, por mais distante da realidade que seja, serve para deslegitimar a esquerda em geral (da qual o PT deixou de fazer parte, ainda que convenientemente o reputem como representante).

Mas é claro que o obscurantismo não se resume ao ódio desmedido à esquerda. Nós o encontramos, como eu disse antes, nas situações de afronta às premissas iluministas e liberais. O grupo é bem variado: separatistas paulistas, arianistas, antinordestinos, skinheads, fascistas, fanáticos religiosos e tantos outros. A eles podemos adicionar agora os "justiceiros", cujas ações bárbaras são apoiadas por âncoras de jornal e por uma massa de comentários raivosos nas páginas de internet. Comentários que, em regra, permanecem recônditos de tão inconfessáveis, mas que pululam quando alguma figura pública do obscurantismo mostra o caminho.

Eu diria que o "motor" do obscurantismo é uma postura que se poderia denominar "conformismo ativo", e que consiste na repulsa resoluta a quem se empenha em transformar (e com isso transtornar) a sociedade. Não se trata da mera indiferença, do marasmo, mas da condenação moral contra quem se levanta contra a sociabilidade existente de alguma maneira. O capitalismo é bom, imagina-se, mas há quem o estrague. E quem o estraga são aqueles que não se ajustam a ele, seja como militantes engajados, seja como indivíduos marginalizados. Além dos "políticos", embora deles só se fale mal; raramente suas cabeças são exigidas.

Quem se opõe às "virtudes" da sociedade (capitalista) existente, neste raciocínio, só pode ser mau. Os "desajustados" abusam da sociedade, cabendo a esta reagir. Espera-se que o Estado possa dar conta de se livrar destes seres "inconvenientes". No entanto, tantas são as contradições sociais  do nosso capitalismo decadente (e os obscurantistas não têm a menor ideia disto) que os descontentes com a ordem, bem como os marginalizados por ela, não param de crescer em número. Diante deste fato, a resposta vislumbrada é a dos Alckmins deste Brasil: polícia e mais polícia.

E se o policiamento não basta, logo se aplaude a iniciativa dos cidadãos de bem que decidem fazer (in)justiça com as próprias mãos, pessoas muito conscientes de seus deveres. Seus métodos são um tanto quanto "rudes", mas cumprem o papel. E os obscurantistas nada temem com a escalada de violência pública e privada (via "justiceiros"), pois só os maus são atingidos - do mesmo modo que se acreditava, farisaicamente, que somente os "depravados" homossexuais poderiam contrair o vírus HIV. Não lhes ocorre que um dia podem ser tomados, acidentalmente, por uma destas figuras a quem desejam tanto mal. Também não lhes ocorre que justiça possa ser algo diferente de vingança...

Firmes nesta crença, os obscurantistas insistem em não pensar racionalmente os dilemas da sociedade contemporânea. "Que disparate imaginar que a maior parte do crime tenha raízes na miséria social e não na pura e simples maldade inerente a determinadas pessoas (sobretudo no que tange aquelas com doses a mais de melanina...)"! "Como são estúpidos os sociólogos e criminólogos que propõem uma explicação científica para problemas como estes"! O obscurantista não está interessado em entender, mas apenas em condenar e reprimir; à maneira de um troglodita, dispõe-se a resolver questões complexas a golpes de tacape, tendo a pachorra de julgar como bárbaros aqueles a quem esmaga. "Viva la muerte, abajo la inteligencia".