sexta-feira, 21 de junho de 2013

O perigo do impressionismo

As forças ultrarreacionárias se fortaleceram nos últimos dias? Sim, é verdade. Temos testemunhado o horror de um movimento que flerta com o fascismo em muitos aspectos. Mas há aqui um "ismo" quase tão perigoso quanto, e que pode nos desarmar para a ação: o impressionismo.

O impressionismo consiste, em apertada síntese, numa leitura da realidade que maximiza um determinado aspecto da realidade em detrimento dos outros, que ignora tanto a totalidade quanto o movimento histórico. É impressionista, por exemplo, quem vive em Istambul e acha que o mundo todo está em convulsão, assim como quem vive em alguma pacata cidadezinha no interior da Áustria e acha que nada de novo acontece no mundo. Significa, portanto, deixar-se impressionar por fatos sem submetê-los a uma análise mais rigorosa, tomando o iceberg apenas por sua manifestação superficial.

E onde entra o impressionismo na nossa conjuntura? Ele está, parece-me, na ideia de que o país está sendo varrido por uma onda fascista, que um movimento progressista transformou-se em reacionário de repente, que a esquerda está sendo dizimada. Em suma, é como se estivéssemos na iminência de um novo golpe de 64.

É hora de esfriar a cabeça e raciocinar. Com base numa análise alarmista e histérica, há setores da esquerda que, de forma honesta, começam a defender o governo Dilma de forma preventiva, como se ele estivesse prestes a cair. Que fique claro: isto não está no horizonte. O que temos hoje é um conjunto de ações direitistas que se espalham com força, que fazem barulho, que machucam, mas não há uma força política reacionária capaz de dirigir uma ação golpista. E para além da ausência de uma direção como esta em nível nacional, é fato que as classes dominantes não estão contra o governo. Se alguns setores da mídia se empenham em desgastar o governo, daí não se segue que o empresariado esteja patrocinando uma quartelada, até porque, salvo melhor juízo, as forças armadas estão muito coesas e leais ao poder civil.

Aliás, é importante falar em quartelada, pois não há possibilidade de golpe sem participação das forças armadas. Ou alguém acha que as pessoas que descobriram que existe protesto fora do facebook há cerca de duas semanas, no máximo, podem ser o sujeito social de um golpe de Estado? De modo algum. Essa gente só vem a reboque. Ontem, vieram na esteira dos skinheads, um setor que, por mais perigoso que seja - e que representa, sem exagero, o que existe de pior na humanidade -, não configura uma força política nacional. Inclusive, é bom deixar claro que eles não dirigiram a passeata, apenas se aproveitaram do sentimento antipartido, tal como fizeram os medíocres participantes do anonymous, caricatura perfeita do filhinho de papai que quer mostrar seu lado "rebelde".

Cumpre localizar bem as hostilidades de ontem contra os militantes de esquerda organizados. As agressões verbais, com efeito, encontraram eco em boa parte dos manifestantes. No entanto, as agressões físicas partiram dos carecas, que estão surfando na onda do antipartidarismo e, sobretudo, na confusão da classe média. Confusão, pois não tem clareza de pauta e nem de conjuntura; sabe apenas que há injustiças no país, fazendo, contudo, interpretações grosseiras da realidade e propondo, na melhor das hipóteses, soluções infantis - e algumas abertamente reacionárias.

Mas sejamos lúcidos: as passeatas de ontem não foram em defesa da redução da maioridade penal, tampouco em defesa da intervenção militar no Brasil ou de qualquer outra excrescência como esta. Elas foram confusas, traziam um sentimento genérico de insatisfação, e cada manifestante desorganizado apresentava a pauta que mais lhe tocava. A referência que os unia era a bandeira do Brasil, e isto não surpreende, pois é a única que possuem. O PT adotou os métodos e o programa dos partidos burgueses, enquanto que os partidos socialistas ainda não conseguiram construir uma alternativa capaz de congregar as massas, não obstante os importantes avanços na reorganização sindical. Não admira, nestas condições, a decepção com a forma partidária, a sensação de que todos são iguais.

Ora, é exatamente por isso que não podemos pensar que tudo está perdido. Não podemos concluir que qualquer pessoa portando a bandeira nacional é fascista, isto seria absurdo. Muitas delas são pessoas dialogáveis que se deixaram levar pela descrença no sistema político (o que é mais que compreensível) e que se equivocam ao igualar todos os partidos, que desconhecem aqueles que são guiados pelas lutas sociais, e não pelo calendário eleitoral. Outras, certamente, não são dialogáveis. Espumam de ódio e estão prontas para aniquilar o que verem pela frente - basta ver a foto que circula no facebook de um indivíduo mordendo uma bandeira vermelha, tal como um cão raivoso (e que me perdoe pela comparação a nobre raça dos caninos).

O que quero dizer com tudo isso é que nem toda a classe média está perdida - e sim, precisamos dela para transformar o país, ainda que ela não possa ser o protagonista do processo. Imaginar um bloco fascista unificado é uma ilusão impressionista, na qual podem incorrer tanto os ativistas honestos quanto os governistas, muito embora estes tenham muito interesse neste discurso. Depois de anos de marasmo, e que "coincidem" com o governo do PT, uma pequena parte das massas se levanta, e tudo o que os governistas querem é que elas voltem para casa, como se elas fossem a vanguarda do fascismo. Querem preservar Dilma, que recentemente se reuniu com Lula e com seu marqueteiro para debater os possíveis impactos do movimento nas eleições do ano que vem. Como se vê, os petistas seguem com seu eleitoralismo até em momentos como este. Seu intuito é esvaziar as ruas, entregar o ascenso de bandeja à direita e esperar que tudo volte ao normal; que venham as eleições, a Copa, as Olimpíadas etc. E pretendem fazê-lo com um palavrório à esquerda: "ou defendemos o governo do PT, ou o fascismo tomará conta do país", como se o governo que se colocou à disposição de Alckmin para conter as manifestações (quando esta era a tática da burguesia) fosse digno de encabeçar a unidade da esquerda.

Mas deixemos os governistas com suas preocupações. Cabe aos socialistas, agora, reconhecer que a onda conservadora atual não é uma tendência absoluta e incontornável. Os ataques físicos aos partidos já começam a despertar alguma ojeriza em alguma parte da juventude e da classe média, e é preciso aproveitar este anseio democrático, cultivá-lo e extrair dele um ânimo renovador - que seja ele a base para uma unidade antifascista da esquerda. E, acima de tudo, não nos esqueçamos que a classe trabalhadora ainda não entrou no jogo, sendo este o fator decisivo. Será que isto vai ocorrer?

Por que os trabalhadores entrariam em cena? Se lermos a cartilha do PT, parece não haver motivo, já que tivemos um "decênio glorioso". No entanto, eles têm muitos motivos para se mobilizarem, e não me refiro apenas à inflação. Falo aqui do endividamento, dos baixos salários, das jornadas de trabalho estafantes e, acima de tudo, da precariedade dos serviços públicos, e tudo isto enquanto se preparam grandes eventos esportivos, vedetes de um espetáculo mentiroso, que oculta a vida dura de quem vive do próprio trabalho. Como não se revoltar com a "fenomenal" declaração de Ronaldo, para quem nossa prioridade deve ser construir estádios, e não hospitais?

Razões para a mobilização dos trabalhadores não faltam, e elas já acontecem em alguns lugares. Não nos esqueçamos dos importantíssimos protestos do MTST contra os grandes eventos esportivos. Eu, particularmente, creio que este deve ser o fio condutor da pauta da esquerda em nível nacional: contra os gastos com a Copa, pela reversão imediata dos recursos em direitos sociais. Nenhum dinheiro público para as empresas, mais verbas para saúde, educação, transporte e habitação! Eis aí a melhor reivindicação, a meu ver, pois ela agrega tanto a classe trabalhadora quanto os elementos mais lúcidos da classe média. E, sobretudo, porque ela põe em cena o classismo, a necessidade de se enfrentar os interesses dos empresários, o que se dá na contramão da consciência colaboracionista inculcada pelo PT em seus 10 anos de governo - pelo que pagamos agora, mais do que nunca, por este desastroso (des)caminho.

A classe trabalhadora ficou adormecida por todos estes anos, e é ela o verdadeiro gigante que precisa acordar. Há esforços conscientes que estão sendo feitos para que isto aconteça, e merece destaque a atuação da CSP-Conlutas. É uma central ainda pequena, mas combativa, com clareza estratégica e disposição de luta. Se nos somarmos a ela em seus chamados aos sindicatos, podemos mudar o curso das coisas. Precisamos de trabalhadores na rua e de greves. Com eles, não só garantiremos um rumo político melhor para as mobilizações, como também estaremos mais protegidos dos bandos skinheads.

Não venceremos esta batalha com moções de apoio ao governo contra um golpe que é apenas desejado por alguns. Venceremos com gente nas ruas. As demais centrais sindicais devem se somar e trazer suas bases, para que tenhamos pelo menos uma unidade antifascista. Não adianta ter disposição de mobilizar só quando ameaçarem investigar o Lula no caso do mensalão. A CUT é a maior central, e deve fazer a sua parte, mesmo que o envolvimento dos trabalhadores possa contrariar os interesses do governo federal. Com a palavra, os burocratas.

Já me encaminhando para o encerramento, quero ressaltar que, apesar dos pesares, temos à frente uma oportunidade única. Entregar o movimento à ultradireita seria um erro crasso para a esquerda, seria ignorar  que nenhuma revolução pode triunfar sem conquistar pelo menos uma parte da classe média. Pelo contrário: o perigo fascista aparece quando as camadas médias da população se unificam em torno de um projeto conservador, e isto nós não podemos permitir. Quem deixa de comparecer nos atos para apenas declamar seus melindres nas redes sociais em nada colabora para reverter a situação, e acaba fazendo o oposto, abrindo mão da disputa do movimento e o entregando de mão beijada para os bárbaros da ultradireita. Aliás, é muito curioso que alguns governistas falem tanto em disputar hegemonia no Congresso Nacional (o ninho das aves da rapina capitalista) e se furtem com tanta facilidade à disputa de uma mobilização que, a despeito de suas contradições, porta potencialidades enormes. É bastante cômodo (e conservador) ficar em casa postando que o movimento endireitou e que não há nada a se fazer, a não ser entregar nossos destinos nas mãos de Dilma.

Mais do que nunca, é hora de buscarmos os trabalhadores e voltar com tudo para as manifestações, com nossas bandeiras em punho, nossas pautas transformadoras e nossas cabeças erguidas. Sim, marchemos de cabeça erguida, pois a disjuntiva histórica nos momentos de decadência do capitalismo é sempre socialismo ou barbárie, e nós tomamos o lado do socialismo! Temos ao nosso lado os mais abnegados, partidarizados ou não, organizados no movimento ou não. Cresce a disposição dos independentes de defender o direito de organização, ainda que, por enquanto, os gritos autoritários dos conservadores prevaleçam. Se os fascistas nos atacam, se a polícia infiltra provocadores, se a burguesia paga pessoas para levantarem seus cartazes odiosos, é porque temem as organizações da esquerda e o papel que podem cumprir no despertar do verdadeiro gigante. Pois sabem que, depois deste despertar, nada será como antes. As massas trabalhadoras são invencíveis. A confiança em suas próprias forças é mais forte do que o aparato repressor do Estado e que os atentados promovidos pelos fascistas e afins. Eis o caminho e a esperança. Sejamos otimistas, é possível vencer, e a atual conjuntura é mais favorável a isto do que o marasmo dos últimos anos.

PS: A unidade antifascista deve proteger o direito democrático dos militantes da base governista (PT, PCdoB, UNE etc.) de erguer suas bandeiras e divulgar suas ideias. Merecem ser protegidos dos bandos fascistas como qualquer cidadão, independentemente de sua orientação política. Porém, se os trabalhadores enfrentarem o projeto burguês implementado pelo governo Dilma, a história há de indagar aos governistas de que lado se posicionarão no curso da luta de classes. E, quanto a isto, não sou tão otimista assim.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Um necessário balanço de uma dia inesquecível

Ontem foi inesquecível. São Paulo conheceu um dia memorável, assim como outras importantes capitais do país. A inércia foi rompida e as massas deram uma pequena demonstração do seu poder. Todavia, cumpre não se deixar inebriar pela euforia e esboçar uma avaliação do que se passou, sendo que pretendo fazê-lo casando elementos que presenciei com uma análise mais geral de conjuntura.
Comecemos pelos elementos positivos. O primeiro, sem dúvida, foi a ausência de ataques policiais ao longo do percurso. É de se imaginar que a repercussão negativa das agressões da PM na quinta passada deixaram os governos estadual e municipal numa situação consideravelmente desconfortável, tornando a dispersão violenta uma medida muito arriscada. Decerto que isto seria como tentar apagar um incêndio com querosene, e nossos governantes são politicamente hábeis o bastante para não cometer um erro tão crasso. Já devem, aliás, estar amargamente arrependidos de terem convocado a tropa de choque na quinta-feira. Em adendo, os números eram assombrosos, remetendo a movimentos históricos como o Fora Collor, o que muda tudo. Reprimir tanta gente não é uma tarefa fácil, tampouco prudente numa conjuntura em que a violência policial só fez catalisar o processo em curso. Uma ação nitidamente intimidatória surtiu um efeito contrário, tal como na Turquia e mesmo nas revoluções árabes. Já não eram manifestantes simplesmente. Eram as massas se espreguiçando, e isto não é nada desprezível, insista-se. Quando isto ocorre, nada garante que as forças repressivas, mesmo que a população esteja desarmada. O poder do número joga um papel formidável nestas situações.
Outro fato interessante foi a receptividade da população. Não testemunhei nenhuma hostilidade dos transeuntes, passageiros e motoristas contra a passeata. Até ouvi algumas poucas críticas no final da passeata, e que se voltavam para as dificuldades de circulação. Mas todas elas serenas e educadas, nada de histeria. Muito mais presentes, inclusive, foram as manifestações de apoio. Diversas pessoas que passavam de carro saudaram a manifestação; a imensa maioria dos transeuntes recebia os panfletos distribuídos, sendo que alguns paravam para conversar e expressavam seu apoio à causa; nos ônibus, os passageiros abriam a janela e estendiam os braços para pegar ps panfletos; trabalhadores em obras na calçada interromperam seu serviço para dar seus cumprimentos e incentivar a luta.
Por último, é fundamental ressaltar o significado de um movimento forte como este às vésperas dos grandes eventos esportivos e logo depois de o PT lançar sua cartilha enaltecendo o suporto "decênio glorioso" que teria promovido no Brasil. Está claro, mais do que nunca, que as medidas paliativas do governo federal não lograram suprimir as contradições que perpassam a sociedade; que a vida no Brasil não vai bem para a maioria, ao contrário do que propagandeiam os corifeus do governismo; que a melhor posição do país no ranking dos PIBs, ao se mostrar desacompanhada dos indicadores sociais (e em nítido contraste, diga-se de passagem), não é capaz de conter a insatisfação popular; que as águas da transformação, represadas pelas ilusões no sufrágio e pela descrença do povo em suas próprias forças, finalmente começam a encontrar brechas e ameaçam por abaixo, quem sabe, o dique inteiro, caso os governantes de plantão não consigam preservar a estrutura.
Agora, os elementos negativos. O principal foi, sem dúvida, o discurso antipartido. Tenho absoluta certeza de que vários manifestantes cantaram muito mais "sem partido" do que "R$ 3,20 é um assalto". Parece que não se localizaram, que não se deram conta de que se tratava de um ato contra o aumento das passagens, e não de um ato contra os partidos. Esta lamentável ocorrência merece uma análise acurada.
De início, é importante perceber que as palavras de ódio contra os partidos não brotaram espontaneamente, embora encontrassem eco em diversos setores. Elas partiam, continuamente, dos "cidadãos de bem", dos quais falarei posteriormente. Contudo, os campeões nesta modalidade foram os anarquistas e os provocadores que a polícia certamente infiltrou para explorar as divisões e diferenças no interior do movimento. Os segundos cumpriam o papel desorganizador para o qual foram designados por sua instituição; os primeiros também desorganizavam, mas voluntariamente, sem constar na folha de pagamento do Estado - pelo menos ao que me conste. Crianças mimadas que sofrem de algum complexo relacionado à autoridade, os anarquistas são uma escória de pequeno-burgueses neurastênicos que substituem a polícia na perseguição aos partidos políticos, relembrando os velhos (ou nem tão velhos) tempos da ditadura. São autoritários e hipócritas o bastante para reivindicar toda liberdade para suas ações individuais e combater as organizações que constroem a mobilização desde o começo. Chegou-se ao cúmulo de tentarem arrancar à força as bandeiras partidárias e de se agredir fisicamente um militante que portava uma delas. Simplesmente repugnante. Ao fim e ao cabo, a diferença entre os anarquistas e os policiais, para além da classe social a que pertencem, é a indumentária: enquanto os segundos vestem farda, os primeiros trajam jaquetas caras, mas ainda assim dignas destes outsiders.
Realcei a participação decisiva dos agentes que insuflaram o divisionismo, desviando o foco da passeata, mas seria ingênuo ignorar o real sentimento antipartidário que abraçou o chamado dos anarquistas. Eu o comentarei mais adiante. Por ora, limito-me a dizer que a grande maioria das pessoas que hostilizavam os partidos, quando conversadas, se acalmavam de alguma forma. Poderia não concordar com a legitimidade da presença partidária; no entanto, passavam a tolerá-la e se voltavam para o objeto da manifestação, ao menos até que novas provocações surgissem e assim por diante. Parece-me aqui um problema de classe, e que tem se expressado como uma tentativa de tucanização do movimento - mesmo que sem apresentar explicitamente as cores do PSDB.
Por tucanização, entendo a insistente perspectiva da classe média de reduzir todos os dramas da humanidade à corrupção e à falta de ética na política. É a miopia extrema de quem enxerga o mundo sob o prisma do indivíduo, como se a sociedade fosse uma mera soma de átomos, e não um conjunto de relações sociais que estão para além dos indivíduos. E, mais do que isto, começam a aparecer difusamente, com muito mais peso no facebook do que na materialidade das passeatas, as pautas da classe média. Uma ou outra progressista, algumas conservadoras e muitas reacionárias. Resta saber a razão deste fato.
Primeiramente, é fato que há setores originários da pequeno-burguesia, da camada privilegiada dos assalariados e do alto e médio clero do funcionalismo público nos protestos. Quando seus componentes permanecem à margem da militância política, não é de se admirar que se ponham em marcha trazendo consigo todas as limitações de quem acabou de sair da inércia, e que reproduzam acriticamente as concepções de suas classes sociais. Além disso, por mais que exista um abismo de classes no Brasil, há mazelas que invariavelmente atingem a todos. Excetuando-se quem vai trabalhar de helicóptero, o sistema de tráfego nas grandes cidades, indissociável do serviço de transporte público, afeta tanto os passageiros de ônibus da periferia quanto quem dirige carros importados. No mais, a violência policial, apesar de ser seletiva, cedo ou tarde ultrapassa as fronteiras da periferia pobre, sobretudo quando se tem um Alckmin, perito em truculência, no governo estadual. 
Em segundo lugar, urge compreender a influência externa sobre um fator interno. Como o Estado e suas colaterais destroem um movimento - ou, pondo a questão de outra forma: como preservam o estado de coisas? Há duas opções: pela força bruta ou pela ideologia. Não que uma exclua a outra. Muito ao contrário, elas se complementam, e uma não pode viver sem a outra. Enquanto a PM distribui cacetadas, tiros e bombas, a imprensa divulga uma versão dos fatos que vem para justificar a ação policial. Entretanto, quando não há uma conjuntura favorável para a violência policial, o mecanismo ideológico opera de outra maneira. Passa-se a desmoralizar a manifestação, seja distorcendo seus objetivos, seja favorecendo as tendências internas que podem destruí-lo ou torná-lo admissível para as classes dominantes. Trata-se de uma contratendência que se opõe à tendência histórica de radicalização que é imanente ao movimento de massas, e que se desenvolve à medida que o levante toma conhecimento do tamanho de seu potencial.
É preciso afastar todo tipo de mecanicismo na análise. Dizer que há uma tendência imanente a um processo histórico significa dizer apenas que este impulso terá de medir forças com as contratendências que são igualmente necessárias, e é no terreno da política que se decidirá se a confiança das massas em suas próprias forças prevalecerá sobre os freios sociais, sobre as figuras de inércia.
É evidente que a imprensa, de um modo geral, se relocalizou. Com a cobertura alternativa feita pelos próprios manifestantes sobre as ações policiais e com a opinião pública voltando-se a favor do movimento, já não se pode simplesmente divulgar que tudo não passa de uma catarse coletiva promovida por um bando de baderneiros. O episódio do Datena, impagavelmente grotesco, demonstra que a mídia não é somente manipulação. Ela é também espetáculo. Às vezes, é preciso dar ao espectador o que ele quer, e não o que se quer que ele pense. Daí o espetacular (e patético) giro de 180 graus do referido apresentador, que se colocou favorável à passeata num tom altamente populista. Se o público deseja o protesto, mesmo que "com baderna", que seja. Os capitalistas da comunicação dependem da audiência para enriquecer.
No entanto, não vemos uma mera rendição. Se o movimento encontra respaldo, a mídia o apoiará, mas ao seu modo. Lançará luz sobre os aspectos que lhe interessam, e que são precisamente as pautas da classe média, um setor confuso que não está habituado a ir às ruas e que vomita o senso comum com invencível facilidade. Ora, será um presente maravilhoso para nossas classes dominantes se as manifestações enveredarem para o discurso tradicional contra a corrupção. Isto porque ele carrega consigo uma lógica que desprestigia as organizações, que apela ao cidadão em sua individualidade e rechaça a bagagem dos coletivos. É a lógica da "bandalheira", de que a política corrompe e que somente o indivíduo, desprovido de espaços de militância, poderá conduzir à salvação. E somente uma coisa poderia unir esse oceano de átomos nivelados pela cidadania pura: a nação, ou ainda, a pátria.
Ah, o patriotismo! Nem preciso citar a tradição internacionalista a que me filio. Para Samuel Johnson, o patriotismo é "o último refúgio dos canalhas"; para Oscar Wilde, é "a virtude dos depravados". É o vazio que se presta a justificar as mais completas barbaridades. Não por acaso, é a ele que recorrem as ideologias burguesa e pequeno-burguesa nos períodos de aperto, espalhando este veneno para o conjunto da sociedade. Os morticínios provocados nas duas guerras mundiais e em muitas outras tiveram como veste o palavrório chauvinista, em nome do qual os interesses imperialistas se fizeram impor. No caso de ontem, a pátria se impunha sobre os partidos. Não há diversidade possível, a única bandeira que se queria respeitar era a brasileira. É assim que funciona a lógica do fascismo: o corpo da nação deve estar unido, e não há espaço para nenhum outro tipo de representação que não seja a nacional. Preciso dizer mais sobre o quão desprezível e totalitário é este raciocínio?
No entanto, não surpreende que uma geração desabituada a lutar se agarre numa falaciosa tábua de salvação. Não se poderia esperar que um iniciante tivesse um desempenho de veterano. O que realmente importa é que, enfim, a sociedade experimenta uma convulsão, o que abre oportunidades para se aprofundar as lutas. Que haja engajamento não só contra o aumento da tarifa de ônibus, como também pela melhoria radical dos serviços públicos, pela reforma urbana, contra as opressões etc. Tudo a seu tempo, claro, mas que se caminhe nesta direção - eis o horizonte a se cultivar.
Seria um enorme equívoco desprezar o movimento pelas infelizes participações de setores mais despolitizados, e mesmo conservadores. Decerto que não são eles que conduzem o processo, e estão bem longe disto. Cabe a nós dar-lhes o devido combate político e trazer para as fileiras da transformação todas as pessoas que apresentam disposição para tanto, para que percebam que é somente a mobilização nas ruas  (e não o moralismo farisaico contido nas críticas ocas à corrupção e ao partidos em geral) que pode trazer mudanças efetivas. O que não se deve é empinar o nariz com arrogância e menosprezar as possibilidades oferecidas por uma situação singular. Como dizia Trotksy, temos que mudar o mundo com as pessoas tal como elas existem, com o material humano disponível, e é uma quimera conservadora decretar que um movimento ou nasce maduro ou não serve. Não cedamos a este capricho pequeno-burguês. Convençamos os ativistas honestos e derrotemos os mal-intencionados. Sigamos lutando e extraindo das mobilizações o que elas têm de melhor a ofertar: a confiança de que é possível vencer os governos, e que não devemos esperar que os governantes cedam de bom grado, à moda benfazeja, os avanços sociais. Ao contrário, eles devem ser conquistados, com firmeza e coragem, num embate histórico que traz, em potência e em última análise, o cenário da real emancipação humana.