sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A Primeira Grande Revelação do Relativismo

Começo com um truísmo: todo(a) militante de esquerda que atua em algum ambiente hegemonizado pelo direitismo já foi acusado(a), pelo menos uma vez, de ser autoritário(a). E o que consta na peça de acusação? Três sórdidos e terríveis crimes: comportar-se como "dono(a)" da verdade, ser maniqueísta e pretender monopolizar o bem para si. Esta malévola tríade delitiva resumiria a vida criminosa do(a) esquerdista, perfazendo uma conduta tipicamente despótica, voltada para esmagar as opiniões em sentido contrário. 

Parece não haver sinal maior de menosprezo pelos mais elevados valores. Esses esquerdistas atentam contra um tesouro inestimável! E quem haverá de denunciá-los? Os conservadores, certamente. Porém, ao agirem assim, cobrem-se de um verniz relativista, muito em voga nos dias de hoje. Quando debatem com a esquerda, esses direitistas não hesitam em invocar uma "questão de ordem". Evitando o aprofundamento no mérito das discussões, tratam de se insurgir contra a postura supostamente autoritária de seus adversários. E fazem-no apresentando as Três Grandes Revelações do Relativismo para a humanidade. Falarei de cada uma destas inestimáveis contribuições para o progresso do conhecimento e da própria civilização. Hoje, veremos a primeira.

Primeira Grande Revelação: ninguém é dono da verdade

A frase "ninguém é dono da verdade", que poderíamos definir como "pouco original", brota das bocas relativistas (e conservadoras) com uma singular facilidade. Aqueles(as) que a pronunciam parecem experimentar um prazer inenarrável no instante do ato. Quisera eu me deliciar tanto com tão poucas palavras! E mais: nossos relativistas anunciam essa máxima com o mesmo ar de triunfo que um gênio da ciência expressa ao se deslumbrar com uma descoberta revolucionária. Eles se vêem diante de algo que julgam um legítimo aforismo, um lampejo de lucidez e perspicácia condensado na brevidade de uma pequena e moderada sentença.

O que leva um relativista a proclamar tão jubilosamente que "ninguém é dono da verdade"? Teríamos aí uma reflexão sobre o sistema filosófico kantiano, sobre a separação radical entre sujeito e objeto no mundo do conhecimento, resultando numa impossibilidade de plena cognição da realidade? Não, o relativista-conservador não chega a este nível de sofisticação, de sorte que sequer é preciso invocar a reconciliação dialética entre sujeito e objeto promovida por Hegel. Só o que temos é a módica e miserável fórmula segundo a qual o que é verdade para alguém pode não ser verdade para outrem.

É preciso reconhecer que, do ponto de vista filosófico, esta proposição não é inteiramente desprezível. Do ponto de vista político, no entanto, ela nos conduz a uma só pergunta: e daí? A filosofia, com efeito, pode dar-se ao luxo de especular sobre a verdade. Na política, diferentemente, esta especulação não faz sentido.

Deve-se ter claro o seguinte: o terreno da política é o terreno dos interesses, os quais se encontram frequentemente em conflito. As ideias e valores não fazem mais do que reproduzir a objetividade e as contradições dos interesses materiais colocados na sociedade, e é por isso que a questão da verdade remonta à práxis social e histórica. Se por um lado o verdadeiro não pode ser concebido como uma categoria transcendente e absoluta, nem por isso há de se falar numa indeterminação abstrata. O verdadeiro é, antes de tudo, produto de um processo histórico de construção permanente, é um movimento condicionado ao devir social. Eis uma noção que os relativistas, antidialéticos que são, não conseguem compreender.

Na perspectiva relativista, a verdade é múltipla e fragmentária, acompanhando a multiplicidade dos sujeitos. E é precisamente aí que se encontra toda a sua fragilidade. Um esquema teórico lastreado numa pulverização tendente ao infinito ignora que os processos pelos quais se cristalizam as visões de mundo transcendem a dimensão do indivíduo, sendo que o mesmo raciocínio vale, por exemplo, para elementos estéticos, códigos de linguagem e outros itens da cultura. Não se deve olvidar que é no interior de totalidade social, organizada e estruturada segundo a produção material da vida, que o mundo da cultura se desenvolve. Ora, quando se constata que o universo da produção material da vida é um espaço de cisão e de violento antagonismo (pelo menos tem sido assim até agora), há de se admitir que os interesses das classes antagônicas colocam critérios de verdade em conflito, sendo que a prevalência do que socialmente se toma por verdade (ou seja, a concepção que se impôs por uma luta de natureza política) depende dos rumos e do desfecho desse conflito.

Vale acrescentar ainda que o método relativista reproduz o individualismo metodológico liberal, consistindo numa reciclagem das "robinsonadas" da economia clássica, das quais Marx tanto se ocupou para lhes dar combate teórico. Ainda que em alguns casos o relativismo admita a existência de sujeitos coletivos, falta-lhe um eixo de hierarquização ontológica. As esferas sociais que concebe estão todas niveladas a priori, não há elementos ou critérios de preponderância ou dominância. É o reino do acaso: os eventos históricos, em tal perspectiva, não portam causas inteligíveis, sendo antes o resultado de uma cadeia de causalidade essencialmente aleatória e, portanto, incognoscível.

Por esse problema de método, o relativismo prostra-se diante das "grandes narrativas", limitando-se ao medíocre horizonte da parcialidade e da subjetividade. Ao se esquivar da tarefa de pensar a totalidade organizada, condição prévia para se enfrentar as questões-chave que a humanidade se propõe, esta maneira de pensar deixa de perceber que a parcialidade e a subjetividade não são mais do que mediações numa estrutura totalizante. Não se trata de negar a individualidade da parte em face da imensidão do todo e do poder organizativo de suas bases, e sim de se conceber cada individualidade como um concreto, e um concreto formado por diversas determinações, uma resultante de tendências contraditórias e contrastantes.

Seria prudente se nossos direitistas-relativistas ao menos parassem para refletir sobre considerações como essas. Ao invés disso, eles seguem com seu discurso superficial, que imediatamente leva a novas demonstrações de farisaísmo, como invocar o tom "autoritário" de quem se atrever a questionar a visão relativista sobre a categoria "verdade". Vale lembrar que, em tempos de discurso pós-moderno, o maior dos pecados é ter certezas políticas. O mal está em utilizá-las para o combate político: é como se tentar convencer o outro de algo em que se crê representasse uma afronta à inteligência do interpelado! Em contraste com tamanha ignomínia, o conservador prefere a inércia política, muito mais confortável e "democrática".

Aqui, mais do que nunca, prevalece a objetividade do interesse. O conservadorismo não é mais do que a expressão ideológica das forças materiais de inércia da sociedade; poderíamos defini-lo como o idioma das estruturas de reprodução social, e é por isso que o direitista típico só se escandaliza com a firmeza das intervenções da esquerda. A inabalável convicção conservadora no mercado e no capital nunca é questionada. O que se questiona é a suposta obtusidade dos militantes que insistem em se referir a um fenômeno chamado luta de classes, ou das feministas, que pretendem despojar os homens do sagrado direito de ver as mulheres como um objeto. Apenas as certezas contestadoras e subversivas são anatematizadas pelo repertório relativista.

Pois bem, ocorre que negar legitimidade às convicções políticas (ainda que de modo contraditório e insustentável, como fazem os conservadores) significa recusar-se em pensar os grandes temas, as questões-chave da humanidade. No domínio dos interesses (campo político), esta postura caracteriza uma fuga dos embates mais necessários, coisa que os explorados e oprimidos não podem se dar ao luxo de fazer. É preciso lutar, e lutar pressupõe certezas sobre as pautas que se encampa. Seria isto vergonhoso?

Para encerrar, uma ponderação. Se João Cabral de Melo Neto nos lembra que não se defende a vida só com palavras, caberia acrescentar: e muito menos com meias palavras. A relevância de um assunto político exige comprometimento e mesmo intransigência com relação a determinados princípios. Estar disposto a abrir mão de valores mínimos em defesa de uma suposta conduta "dialógica" e "democrática" é conduta própria de espíritos pusilânimes, que encontram na frouxidão de caráter uma estranha fonte de regojizo. Lutar pela transformação social implica agarrar-se pela raiz aos interesses dos setores espoliados e, portanto, à verdade dos espoliados, ao seu ponto de vista crítico e revolucionário. A reflexão e a autocrítica são sempre necessárias, mas cumpre escolher bem sob qual ponto de vista elas serão feitas. Não se pode prescindir de confiança na justeza da causa que se abraça, tampouco confiar nelas pela metade. Entregar-se à luta é entregar-se por inteiro, é sentir no oprimido a dor imposta pela violência que o constitui enquanto oprimido, é cerrar fileiras ao seu lado até as últimas consequências. Nossos relativistas, na qualidade de indivíduos prudentes e de mente aberta, não correrão o risco de errar, de se aventurar numa empreitada de engajamento, que seria uma reprovável tentativa de imposição de uma verdade. Mas se este modus operandi não altera o estado de coisas, servindo apenas de lamúrio em face das forças reais de transformação, então o seu respeito pela "verdade" de cada um se converte em respeito pela inércia da sociedade, pela manutenção do que está dado. Eis porque a superação do horizonte relativista é o primeiro passo para a superação do diletantismo improfícuo, este estado de pureza que, em sua ilusória pretensão de se postar acima dos conflitos mundanos, revela-se como elemento de reiteração da realidade que os engendra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário