domingo, 16 de outubro de 2011

A Marcha da Família Franciscana pela Liberdade

Nunca pensei que, depois de formado, escreveria sobre questões pertinentes à política acadêmica da FDUSP. No entanto, em virtude do fato de cursar pós-graduação naquele lugar, acabei tomando contato com um fenômeno que simplesmente me obriga a falar. Eu o batizei, carinhosamente, de "Marcha da Família Franciscana pela Liberdade".

Para os(as) que não são do meio, felizardos(as) em inúmeros aspectos, convém fazer uma rápida introdução. Dentre as diversas tradições da "Facvldade" (sic) de Direito do Largo de São Francisco (também conhecida como FDUSP), existe uma chamada "Peruada". Oficialmente, trata-se de uma manifestação política promovida pelos alunos(as) da faculdade no centro de São Paulo sobre algum tema relevante, sendo que essa manifestação é caracterizada por sua irreverência (ridendo castigat mores). E como forma de instigar esta irreverência, nada melhor do que o álcool como meio de despertar a alegria e a desinibição, numa espécie de realização empírca dos louvores de Charles Baudelaire ao vinho (vide o seu "Paraísos artificiais").

Na prática, trata-se de uma simples micareta pelo centro. E que me entendam bem: pouco me importa que o tráfego seja paralisado por conta de uma festa pequeno-burguesa. Não sou desses românticos apaixonados pela circulação, nem desses beatos que demonizam as alegrias e prazeres dionísicos (embora deva reconhecer que eles não me cativam). Só o que acho é que os(as) "franciscanos(as)" (refiro-me aos estudantes, e não aos membros da ordem religiosa) deveriam reconhecer aos verdadeiros manifestantes, ou seja, àqueles(as) que verdadeiramente estão engajados numa causa política, o direito de fazerem o mesmo. Chega a ser um enfadonho cliché a imagem do estudante do Largo escandalizado por passeatas de movimentos sociais que interferem na liberdade de ir e vir dos cidadãos. É claro que esta objeção não se aplica, na medíocre mentalidade deste indivíduo igualmente medíocre, à Peruada. Afinal, a Peruada é uma tradição, e não uma tradição qualquer. Ela é, para além do momento de catarse dos comportamentos que os franciscanos cotidianamente vedam a si próprios em função de seu cínico moralismo, o paroxismo da ideologia franciscana. Veremos como opera este mecanismo ideológico mais adiante.

O que me chama a atenção agora, evidentemente, não é a realização da festa, que ocorre todos os anos, e sim o movimento de várias pessoas contra a política da gestão do C.A. de não utilizar passistas "mulatas" no evento. Na esteira de seu tom carnavalesco, a Peruada sempre contou (ao que me consta) com a presença de mulheres negras e belas seminuas. Desta vez, houve um veto a esta prática, sob a correta argumentação de que é preciso combater os mecanismos de reprodução de estereótipos racistas e machistas. Tais qualificativos, vale dizer, são merecidos por projetarem uma imagem coisificada da mulher negra, como se seu grande papel fosse servir de objeto de adoração erótica. Não obstante, isto não remediou o indizível mal-estar causado em muita gente. Ao contrário, o que se viu foi que este mal-estar se materializou no que chamei de "Marcha da Família Franciscana pela Liberdade", e tentarei analisar este acontecimento nos marcos da ideologia franciscana que mencionei.

O que vem a ser esta ideologia? Coloquemos da seguinte forma: o franciscano médio (sim, ele existe) acredita piamente que estuda na maior e melhor faculdade de direito do planeta Terra, quiçá do sistema solar. Ele se orgulha de ter sido aprovado num filtro de classe chamado vestibular, que não faz mais do que bulinar seu ego com a volúpia da soberba. O caráter meritocrático e individualista da sociedade burguesa, esta selva de concreto onde reina o cada um por si, fala diretamente ao coração do pequeno-burguês ingressante na FDUSP. Incorrigivelmente galanteadora, a ideologia franciscana seduz o interpelado com um discurso mais ou menos assim: "Você é especial. Você pertence à nata da sociedade. Agora que você penetrou pelos pórticos sagrados deste Templo, tudo lhe é permitido. A você será dado acessar lugares que aos meros mortais não é dado acessar, e tudo graças à marca que você porta".
Esta maneira de pensar não se deve inteiramente ao individualismo inerente à sociedade burguesa. E nem poderia ser, pois a FDUSP nunca foi a vanguarda do pensamento burguês. Esta "Facvldade" traz em si um estranho amálgama entre a racionalidade moderna, burguesa, e o tradicionalismo do Antigo Regime. O resultado é a produção de uma ideologia liberal pela metade, que consagra a guerra de todos contra todos típica do liberalismo, mas que, ao mesmo tempo, mina as bases da igualdade formal, já que não abre mão da lógica do privilégio. A liberdade, neste sentido, torna-se uma liberade liberal atávica. Ela deve ser maximizada, mas somente para os privilegiados da São Francisco, e não para todos. A Peruada é para o franciscano, e para mais ninguém. O "Pindura" é para ele; para os outros, é crime patrimonial.

Eis porque, no imaginário vulgar do franciscano médio, ele estuda na Gloriosa "Facvldade de Direito do Largo de São Francisco", e não na FDUSP. Ele vive num mundo a parte, que não está inserido numa universidade, numa cidade, num país etc. Com isso, as tradições deste espaço tornam-se autorreferenciadas e autossuficientes. No hermetismo radical de seu universo, não se toleram ideias que lhe sejam externas. Daí porque o entendimento de que a política na faculdade obedece a uma lógica própria encontra tanto eco. O pecado imperdoável da gestão e dos setores que se colocam contra a utilização das passistas negras no evento foi profanar um elemento cristalizado na tradição do Largo com um elemento externo, qual seja, a crítica ao machismo e ao racismo.

Estaria eu insinuando que o franciscano médio é racista e machista? Digamos assim: se ele o for, isto acontece apenas pela inércia da sociedade em que está imerso (sem se dar conta), e não por uma convicção consciente. Note-se que estou descartando da análise, piedosamente, o setor obscurantista da faculdade (um protoplasma reacionário que reune de tudo: paulistas separatistas, higienistas sociais, saudosistas do pátrio poder, homofóbicos declarados, fundamentalistas cristãos, fãs do Reinaldo Azevedo e outros). O franciscano médio seria incapaz de defender a tese da inferioridade das mulheres e dos negros. No entanto, ele está pronto para se insurgir furiosamente contra quem atentar contra uma das tradições que tanto idolatra.

Ora, é precisamente por idolatrar as tradições da faculdade que o franciscano médio não está em condições de examiná-las criticamente. Não lhe passa pela cabeça que uma tradição pode estar impregnada de estigmas preconceituosos. Ela é o que é: um dogma, uma ideia autorreferenciada, isto é, que vale por si mesma. Seria necessário dessacralizar o Largo para que o debate sobre machismo e racismo pudesse acontecer plenamente. Enquanto isso não ocorre, o franciscano médio continuará reprovando o assédio sexual no metrô de São Paulo, mas também continuará a se referir às "pucanas" com adjetivos os mais escusos possíveis.

Este chauvinismo franciscano, na minha opinião, é um cordão sanitário que cria zonas ideológicas de isolamento e de exceção. Um estudante mais esclarecido poderá até dizer que o mundo é machista. Todavia, esta categoria não seria aplicável a eventos como a Peruada e os Jogos Jurídicos, por exemplo, pois a "Facvldade" é um mundo particular (até a grafia é particular), com códigos de significação próprios. Mesmo sem o saber, o franciscano é adepto de Luhmann. É como se o sistema "Largo de São Francisco" tivesse uma lógica própria que não se comunica com a lógica dos outros sistemas, como o sistema "realidade social".

Não causa estranheza, pois, que a família franciscana esteja em marcha. O que ela deseja? Liberdade. Liberdade para gozar os prazeres de uma vida mesquinha sem se preocupar com quem habita os porões da sociedade. Liberdade para se deleitar com a sensualização da mulher em detrimento de seus potenciais humanos. Liberdade para ignorar a condição do povo negro. Liberdade, enfim, para usufruir de seus sonhos e fantasias sem ser turbada pela política ou pela ditadura do politicamente correto, que se atreve a questionar sobre sonhos e fantasias usufruidos desde tempos imemoriais. Afinal, denunciar as opressões imediatamente aparece como uma infiltração do sistema "realidade social" no sistema "Largo de São Francisco". Que horror!

Poderão dizer que carrego excessivamente nas minhas tintas; que me refiro a uma caricatura, pois o franciscano médio não é tão alheio ao mundo assim. Entretanto, estou bastante seguro de minha posição, e digo isso porque esta não é a primeira Marcha da Família Franciscana que tive o desprazer de testemunhar. Houve outra, muito mais aguda, em agosto de 2007. Aliás, o faniquito de hoje não é nada comparado ao ataque neurastênico da ocasião.

Explico-me. Em agosto de 2007, ocorreu a "defloração" do Largo por um grupo de movimentos sociais que, numa Jornada Nacional pela Educação, realizou uma ocupação do prédio. O episódio representou, para muitos, a cavalgada dos quatro cavaleiros do apocalipse sobre a Terra. As pequeno-burguesas temiam por suas bolsas. Os pequeno-burgueses temiam por seus celulares de último tipo. Os filhos da grande burguesia, sentindo-se violados, queriam correr daquele cenário tétrico, e logo suspiraram poesia: "Meu reino por uma limousine!". Para eles, inclusive, foi uma apresentação: pela primeira vez viram de perto, ao vivo e a cores, homens e mulheres oriundos das classes esmagadas pelo capitalismo (com exceção das empregadas domésticas e dos porteiros de condomínio, por óbvio).
Mais do que odiar os pobres (o que não era exatamente uma novidade), a família franciscana passou a odiar a gestão do C.A., a qual, sabendo da iminência da ocupação, optou por não divulgá-la, de modo a evitar que o diretor, aprendiz de Mussolini, tomasse medidas para impedir as atividades políticas. No fim das contas, o movimento foi reprimido duramente, e o diretor João Grandino Rodas foi elevado à condição de Salvador da República Franciscana. Com sua tropa de choque, cruzou o Rubicão do "Território Livre" para destruí-lo, e os alunos o amaram por isso. Foi recebido como um herói. Se não lhe estenderam um tapete vermelho, foi apenas por repulsa a uma cor tão subversiva. Só se tornou vilão por conta de umas presepadas com a biblioteca da maior faculdade de direito do sistema solar, quiçá da via láctea. Sou da triste época em que Rodas era Lord Protector, e não Persona non grata.

Pois bem, por qual razão a família franciscana destilou seus sentimentos mais inconfessáveis contra a diretoria do Centro Acadêmico? Porque pouco importa o caráter público da universidade (aliás, que universidade? Só existe "Sanfran"!). Porque a diretoria do XI de Agosto deve viver no mundo hermeticamente fechado do sistema "Largo de São Francisco", não lhe sendo dado dialogar com movimentos sociais. O que estava em jogo, para a massa efervescente de franciscanos médios, não era a abertura da universidade para os movimentos sociais ou a abertura da sociedade para a realização da política para além dos gabinetes burocráticos do Estado. O que estava em jogo era a autoridade caprichosa da família franciscana sobre seu mundinho restrito e mesquinho. Sua altivez é tal que, no seu entender, é dado a ela decidir sobre os limites da liberdade de manifestação. O domínio do franciscano sobre sua ilha está acima das grandes questões que a sociedade brasileira se coloca, tamanha a sua empáfia doentia. É como se o além-muros não existisse ou, ainda que existisse, necessariamente orbitaria em torno daquela ilha paradisíaca.

Voltando ao caso das "mulatas". Nosso franciscano médio, dirão alguns, não é tão limitado como pressupõe meu esquema. Ele saberá propor, em sua defesa, que as mulatas da Peruada são apenas um reflexo da cultura brasileira, em clara alusão ao carnaval. Eu até entraria neste debate sobre a naturalização da imagem da mulher negra. Se não o faço, é por uma simples razão: não é isto o que preocupa o franciscano médio. Ele até transita nesta discussão, mas sempre que se vê ameaçado, volta correndo para seu porto seguro: a concepção insular da faculdade. Cedo ou tarde, nos será revelado que, independentemente da polêmica se há ou não reforço a estereótipos opressores, os alunos devem decidir, assim como, em 2007, cabia-lhes decidir sobre as liberdades democráticas dos militantes de movimentos sociais.

E vou além: nosso franciscano médio é suficientemente ignorante para acreditar que, na remota hipótese de uma situação opressora envolvendo as negras seminuas, poder-se-ia remediar a situação com mulheres brancas seminuas, ou com homens seminus! Convenhamos: somente um espírito persistente no ato de chafurdar no lamaçal da tolice pode conceber a opressão social como um jogo de soma zero, ou como um problema de nivelamento. Que brilhante solução encontrada: vamos sensualizar todos, coisificar todos, sem distinção! E para cada mulher negra, vamos aliviar o fardo do racismo com uma mulher branca! E para cada mulher exibida como um apetrecho, como um adorno num ambiente orgíaco, vamos colocar um homem para anular o machismo! Ao que parece, os movimentos de raça e gênero perderam tempo demais discutindo as relações entre capitalismo, opressão de raça e de gênero. Só o que precisamos fazer é proceder com ajustes numéricos. O pensamento social é insignificante perante a aritmética...

Em suma, espero ter apresentado a contento uma perspectiva de análise para o ridículo chilique franciscano do presente. Infelizmente, a melhor faculdade de direito... etc. etc..., não bastasse ser composta majoritariamente pela elite e pela classe média, vive de discutir as disputas patrimoniais de Caio e Tício. Os problemas da mulher negra brasileira não integram o sistema "Largo de São Francisco", sendo que o mesmo vale para o racismo e o machismo em geral. O cordão sanitário da sacralização do Largo isola esses temas.

O que fazer? É possível romper este cordão? Creio firmemente que sim. Como? Mais do que "como", devemos perguntar "quem". As flores que brotam do asfalto franciscano, com efeito, são demasiado escassas. De todo este episódio grotesco, o mínimo que podemos propor é: cotas raciais e sociais já!

3 comentários:

  1. Este texto é antológico, merece entrar para a nossa futura obra "A Contra-História do Largo de São Francisco".

    Meus efusivos parabéns, Pablo!

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  2. Texto sensacional. Em diversos momentos pode ser extrapolado para o meu universo, dos alunos de medicina, que vivem num mundinho de tradições que se auto-sustentam pelo fato óbvio de pertencerem à melhor faculdade de medicina do galáxia, quiçá do universo. E isso porque estudo na unicamp, mais de metade dos meus colegas de classe estão aqui porque não passaram na USP (e sabidamente a auto-intitulada porcada nos vê como escolinha de segunda classe).
    Em outros momentos, quando você discorre sobre a liberdade, pode ser extrapolado para toda a burguesia que questiona movimentos contra a discriminação de minorias como exageros ou atentados à liberdade de expressão.
    Parabéns

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  3. Muito obrigado pelos comentários, Thiago e Érika. Que bom que você lembrou desse nosso antigo projeto, Thiagão! De fato, é uma coisa que não podemos deixar de fazer.
    Érika, agradeço também por partilhar sua experiência da Unicamp. Num país com um acesso restrito ao ensino superior como o nosso, que conheceu como forma de expansão apenas o boom das universidades privadas, com cursos caros e de baixa qualidade, não surpreende que surjam ideologias no interior das universidades públicas que expressam o orgulho das classes economicamente privilegiadas em face das demais. Cada faculdade tem sua história peculiar de elitismo e elitização, mas o fenômeno é geral mesmo.

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