sábado, 5 de novembro de 2011

A Segunda Grande Revelação do Relativismo

Segunda Grande Revelação: não existe luta do bem contra o mal

O conservador disfarçado de relativista, ao envolver-sr em discussões com a esquerda, utiliza um aparelho retórico muito particular. Poderíamos chamá-lo de "maniqueímetro". Toda vez que um militante de esquerda defende seu ponto de vista com confiança e comprometimento, expondo as consequências de cada alinhamento na política (ou seja, as implicações da tomada de partido num dado conflito), o mencionado dispositivo começa a apitar, fazendo um verdadeiro escarcéu.

Se digo, ilustrativamente, que a sociedade está dividida em exploradores e explorados, o maniqueímetro imediatamente se colocará em funcionamento. Falar em exploradores e explorados, para o conservador-relativista, significa falar numa luta entre o bem e o mal. Então, deleitando-se com a própria sagacidade, este direitista apontará a impossibilidade desta dicotomia na política, pois bem e mal são conceitos relativos.

O grande artifício conservador está em deslocar uma questão política (no nosso exemplo, o conflito de classes) para o âmbito moral, este domínio fluido onde quase tudo é possível. Nada mais conveniente, pois o alinhamento com os interesses materiais da sociedade, objetivamente operantes, acaba sendo coberto por um véu ideológico. O antagonismo entre interesses em choque é apresentado como mera divergência de opiniões, como simples diferença de perspectivas. E se tudo não passa de uma questão de ponto de vista, então entramos no confortável reino do "tanto faz".

Para desmentir esta insustentável concepção, basta que nos reportemos à base material de todo e qualquer debate político. Independentemente do que se entenda por bem ou mal, todos os dias um enorme contingente humano produz a riqueza social por seu trabalho, e todos os dias uma pequena camada da população se apropria, sem trabalhar, da maior parte desta riqueza, ainda que por diferentes formas (lucro, renda, dividendos, juros etc.). O nome deste fenômeno é exploração, ou, se preferirmos usar um sinônimo mais ameno, extração do produto social excedente. Se isto é bom ou mau, justo ou injusto, pouco importa para a realidade.

A esta altura, algum desventurado leitor relativista haverá de nos constranger com seu maniqueímetro, pois a simples referência a um evento tão maniqueísta como a exploração seria uma prática inaceitável de minha parte. Estou disposto a reconsiderar, mas com uma condição: que este interlocutor me demonstre como lucro, renda, dividendos e juros representam a contrapartida de uma atividade verdadeiramente produtiva desempenhada pelas personificações do capital. Caso não consiga fazê-lo, só lhe restará tentar provar que as citadas formas de rendimento não repousam sobre o mundo do trabalho, sendo antes resultado da materialização do éter...

Tem-se, pois, que o primeiro passo para uma discussão política séria é reconhecer a objetividade dos fatos. A exploração, assim como o machismo, o racismo e a homofobia, são dados da realidade. Negar isto é supor um mundo imaginário, sem nenhum tipo de violência real. É como se todos os problemas da humanidade decorressem de falsas ideias sobre sua situação, e não sobre a sua situação em si. Há um número aterrador de pessoas que acreditam que o mundo seria melhor se seus habitantes pensassem que ele é melhor. Lutar contra a espoliação e a tirania que assolam o mundo seria apenas "inventar" a espoliação e a tirania!

Mas por que nossos conservadores se portam assim? Por qual motivo insistem em tratar antagonismos políticos como uma questão de moral e em se referir a noções como exploração e opressão como se fossem paranóicas ou caprichosamente divisionistas? Simples: negar o conflito é a alma do negócio. Mais do que distorcer a realidade, é preciso que a distorção ideológica seja capaz de sugerir que uma sociedade como a nossa é composta por interesses convergentes, e que as oposições que se verificam são parciais e marginais. E para deslegitimar os discursos que reivindicam o antagonismo, nada como "infantilizá-los", ou seja, tratá-los como se fossem lastreados numa concepção simplista e transcendente, como se não espelhassem nenhum conflito material.

A negação do conflito, em verdade, é a negação da própria política, que nasce precisamente da movimentação de sujeitos cujos interesses estão objetivamente contrapostos (por exemplo: a extração do trabalho excedente funda o antagonismo entre as classes, independentemente da vontade individual de seus membros). A negação da política, por sua vez, é a receita da inércia dos dominados, é o caminho da prostração, da derrota sem combate. A grande ofensiva do capital contra o trabalho nas últimas décadas, conhecida como neoliberalismo, foi baseada na ideia, ainda que não proclamada deste modo, do fim da política. O capitalismo, depois da derrocada do bloco soviético, foi promovido ideologicamente. De modelo de sociedade passível de discussão, foi transformado em força da natureza. E a natureza, como se sabe, não pode ser "superada", mas apenas "administrada" dentro de limites.
Tanto é assim que, hodiernamente, o "uso político" da taxa de juros (este instrumento de política econômica tão débil quanto fetichizado) é motivo de escândalo. Um governo não deve definir objetivos para um elemento da natureza, como é o caso da taxa de juros. Resta-lhe apenas "compreender" qual é a vontade do mercado, isto é, extrair de suas manifestações um sentido a se seguir. "Quo vades, domine"!.  Que terrível destino aguarda um país que não conta com profissionais suficientemente qualificados para realizar a intelecção dos desígnios do Des-mercado! Prioridades políticas? Blasfêmia! Tudo não passe de uma questão de técnica, tudo se resume a qualidades e deficiências inocentemente técnicas e administrativas.

Que pensar do enxuto linguajar "político" dos dias de hoje? Contra a delirante visão marxista da luta de classes, o que temos é uma "sociedade civil" cada vez mais "heterogênea" e "complexa". Há vários "atores" em constante interação, perfazendo um ambiente "pluralista". Nosso desafio é fazer com que estes atores se percebam como "parceiros sociais", promovendo o espetáculo da concertação, e tudo sem prejuízo das "identidades". Como? Pelo "diálogo", fonte da redenção eterna via "produção de consensos". Pronto! Já está pavimentado o caminho da "cidadania". E enquanto estas belas palavras, nada conflitivas, são repetidas ad nauseam no repertório dos partidos da ordem (quase coloco no singular), das ONGs (tanto das sérias quanto das mal-intencionadas) e do sindicalismo pelego, a vida segue: a mais-valia flui para os bolsos dos capitalistas, as mulheres são coisificadas pelo capital, os LGBTTs se vêem alijados de conquistas mínimas que marcaram a civilização burguesa etc. Aliás, todas as vitórias obtidas pelo movimento neoliberal foram formuladas nos termos que coloquei em destaque.

Contra este estado de coisas, impõe-se a refundação da política pela lógica do conflito, pelo embate entre os inconciliáveis. Que os dominados encarem de frente os dominantes, que venha a polarização. E quanto à luta do bem contra o mal? Depois que nossos conservadores assumirem os interesses que defendem e representam, teremos prazer em concordar com eles quanto à tese de que "bem" e "mal" são "relativos", já que a axiologia dos dominados não é a mesma que a dos dominantes.

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