segunda-feira, 17 de março de 2014

Uma democracia com métodos ditatoriais

Democracia e ditadura são regimes distintos, ninguém o negaria - ainda que uma democracia liberal seja uma ditadura no sentido de prevalência em última instância dos interesses da classe dominante. Deixadas de lado, provisoriamente, as determinações de Estado, podemos distinguir, sem medo de errar, os dois regimes, já que cada um deles comporta uma distinta configuração dos aparelhos repressivos e ideológicos de Estado. Consequentemente, o uso da violência estatal adquire feições diferentes nos dois casos: a violência ditatorial é "nua e crua", ao passo que a violência "democrática" serve-se de mecanismos institucionais liberais - o que pressupõe a observância de certas garantias individuais e de todo um procedimento legal por parte das autoridades.

Entre democracia e ditadura, há um meio termo: o bonapartismo. Poderíamos pensar os regimes bonapartistas como democracias liberais degradadas. Não chegam ao patamar repressivo de uma ditadura, pois as instituições liberais são preservadas, mesmo que um tanto pervertidas em sua lógica (alguns "sintomas" do bonapartismo: concentração exacerbada de poder no Executivo, fragilidade dos aparelhos ideológicos, uso rotineiro das Forças Armadas etc.). Diferente do que ocorre nas ditaduras, em que tais instituições são suprimidas ou reduzidas a elementos de encenação.

É evidente que, no Brasil, temos um regime democrático liberal. O problema é que, à bem da verdade, isto se torna cada vez menos evidente, de tal modo que, frente às medidas tomadas pelo governo federal e por diversos governos estaduais desde junho de 2013, torna-se pertinente indagar sobre as fronteiras entre democracia e ditadura.

O que faz do regime político brasileiro uma democracia liberal é a configuração de sua aparelhagem de Estado. No nosso país, o Estado ainda age segundo parâmetros liberais: a separação de poderes está presente, a violência oficial passa pelos filtros do Judiciário e existem liberdades democráticas. O eixo do poder político - ou melhor, do exercício do poder político - está no domínio civil, e não no domínio militar.

É claro que cada um desses pontos merece e exige algumas ressalvas. Primeiramente, cabe advertir que é "normal" que o poder executivo se destaque sobre os demais, e isto ocorre em todos os países do mundo (principalmente a partir do século XX). Apenas o capitalismo vitoriano da Inglaterra do século XIX conheceu a primazia política real do parlamento sobre o chefe de governo (talvez a França de 1830 a 1848), sendo que, no caso inglês, Executivo e Legislativo já se encontravam organicamente ligados.

Em segundo lugar, parece óbvio que sempre existe uma violência extraoficial, maior ou menor, a depender do contexto. o Estado, precisamente por ser Estado, garante a si mesmo a prerrogativa de violar a sua própria legalidade. Afinal, não poderia proteger as relações sociais de produção a qualquer custo se estivesse preso à letra da lei, por mais burguesa que venha a ser esta lei. O fundamento último da autoridade é sempre a força, nunca o direito.

E em terceiro lugar, podemos inferir que existem liberdades democráticas pelo simples fato de que as organizações de esquerda não foram lançadas à clandestinidade, e que a crítica política não é formalmente punida. É suficiente que os aparelhos ideológicos a condenem à marginalidade.

Se se encontram presentes os requisitos que caracterizam o regime democrático, o que resta para discutirmos, afinal?

Na verdade, o que chama a atenção na democracia brasileira de hoje é o modo como ela se apropria de práticas ditatoriais, mas sem por isso deixar de ser democrática no plano formal. Às vésperas do aniversário de 50 anos do golpe militar de 1964, constatamos que, nos dias de hoje, as classes dominantes brasileiras enfrentam as lutas sociais não mais ao velho estilo, aplicando quarteladas grotescas (1964 foi apenas uma de várias), mas de um modo mais sofisticado. O que vemos atualmente é um coup d'État sutil, diluído em diversas medidas governamentais esparsas e implementado pelas próprias instituições democráticas (e não pelas Forças Armadas) - o que nos dá uma democracia repleta de métodos ditatoriais.

Por óbvio, democracia nunca foi sinônimo de plena liberdade. Os regimes democráticos concedem liberdades políticas em maior ou menor grau - ou, se quisermos enxergar pelo avesso, restringem as liberdades em maior ou menor grau. As democracias podem ser mais ou menos abertas (ou fechadas), tendo como limite de referência, invariavelmente, as relações capitalistas de produção. No Brasil de hoje, o regime está se fechando, não há dúvida. Mas até que ponto o regime democrático pode continuar se fechando sem deixar de ser democrático-liberal, isto é, sem se transformar claramente numa ditadura?

Esta pergunta é importante porque, atualmente, em que pese a ridícula "reedição" da "Marcha da Família" organizada por saudosistas da ditadura militar, tais reacionários são muito menos ameaçadores para as liberdades democráticas do que figuras como Fernando Grella, Geraldo Alckmin, José Eduardo Cardozo e Dilma Rousseff. Estes agentes de Estado, ao criminalizarem as formas de protesto, constrangem muito mais a ação das forças políticas de esquerda do que a extrema direita atual - diferentemente do que se deu há 50 anos atrás, quando houve um movimento de massas direitista que endossou o golpe.

Contudo, seria um grande erro personalizar o fenômeno da repressão contemporânea, pois o que importa aqui é a lógica de Estado num contexto bastante determinado (reação às jornadas de junho e temor por tudo aquilo que diz respeito à Copa, este evento do imperialismo politicamente patrocinado pelos governistas com tanta entrega e disposição). Os métodos ditatoriais da democracia brasileira estão sendo elaborados e aplicados não só pelos agentes da cúpula do Estado, mas também pelos agentes intermediários: delegados, promotores, juízes e tantos outros - às vezes sob a direção organizada da cúpula, é verdade, mas nem sempre.

O que se percebe agora é uma procura sistemática nos dispositivos legais em vigor para se criar teses no sentido da criminalização. Veja-se bem: a criminalização está longe de ser uma novidade; o que me parece peculiar é a produção de teses para ampliá-la, o que aparece nos novos enquadramentos. Exemplos: tipificação da mídia ninja no RJ como crime de falsidade ideológica (!) - como se eles estivessem se passando por jornalistas e cometendo uma espécie de fraude; tipificação do Bloco de Lutas no RS como "milícia" (!!); detenção de pessoas em SP pelo puro e simples "risco" (!!!) de praticarem crimes; e um longo etc.

Já vimos movimentos semelhantes contra o MST no início deste século, mas nada tão sistemático e disseminado como o que ocorre agora. Até mesmo a Lei de Segurança Nacional renasceu das cinzas. Por toda parte, há esforços para se fechar as arestas de liberdade que o regime oferece, e o impulso deste movimento vem inequivocamente de cima para baixo - e não o oposto, por mais que não falte em setores da "sociedade civil" o desejo de recrudescimento da repressão.

A democracia "importou" da ditadura algumas instituições (como a PM) e leis (como a LSN), mas não pode ser uma cópia exata. É preciso, na perspectiva de quem domina, implementar o mesmo conteúdo (restrição às liberdades) sob uma forma diferente. Como peculiaridade, a democracia amplifica a interpretação e a aplicação do código penal, fazendo-o sob o discurso do império da lei - pois um código de leis é sempre algo muito liberal. Os agentes do Estado passam a torturar a letra da lei até obter dela o enquadramento necessário (por mais escatológicas que sejam as teses), da mesma forma que muitos policiais torturam os suspeitos para obter confissões e encerrar seus casos. Temos uma estranha fusão entre democracia e ditadura: a forma da primeira envolvendo o conteúdo da segunda.

Se a democracia tem se aproximado tanto da ditadura - e com isso concluo -, é pela razão de Estado que sustenta os dois tipos de regime. Sendo o Estado, com as mediações sociais da forma política, a violência de classe organizada, não admira que este Estado sirva-se do terror como expediente (os regimes fascistas mostraram esta lógica no seu paroxismo). A criminalização desmedida da política e da contestação social, inclusive sob a crescente mediação da forma jurídica e de suas instituições, consiste na versão "democrática" do terrorismo estatal. Sim, terrorismo é a palavra: incutir na vanguarda e nas massas o sentimento de que lutar não vale a pena, de que a força das armas é superior à força da mobilização, de que o medo é o conselheiro mais prudente. A falsidade desta ideia que se quer divulgar, porém, está amplamente demonstrada na história das revoluções - uma história que, como processo, não é apenas passado, mas também um presente muito vivo neste nosso mundo em ebulição, fecundo em sonhos e possibilidades.

Nenhum comentário:

Postar um comentário