quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Marxismo x chavismo

"A emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora", dizia Marx. Esta frase deveria ser um norte para a esquerda, não é mesmo? Pois é, deveria...

É claro que nem toda a esquerda é marxista. Na verdade, o marxismo hoje é minoritário na esquerda, embora boa parte dos que se inserem nesta posição do espectro político, não obstante, reivindique para si a teoria do autor de "O capital".

No Brasil, particularmente, não faltam indivíduos e correntes políticas que prestam suas homenagens a Marx no discurso e que, sem qualquer tipo de crise de consciência, adotam o programa e os métodos da burguesia. Nunca ocorreu a certas pessoas que defender o socialismo, de um lado, e apoiar governos burgueses, de outro, é um contrassenso - e aqui faço questão de dizer contrassenso, pois não faltarão espertalhões decididos a buscar na dialética, mais precisamente na categoria da "contradição", um salvo-conduto para a incoerência e o oportunismo.

Pretendo discutir nestas linhas a distância que separa alguns setores da esquerda de um básico postulado da teoria marxista, e que consiste na tese da autoemancipação do proletariado. O motivo que me leva a fazê-lo é a necessidade de criticar os idólatras de determinados governos latino-americanos.

Para começar, quero deixar claro que, quando falo em autoemancipação do proletariado, não incorro em nenhuma concessão teórica e política aos anarquistas e autonomistas de plantão. Entender que a classe trabalhadora pode libertar-se do jugo do capital, e que só pode fazê-lo por suas próprias mãos, em nada afasta a exigência de direções no movimento de massas - até porque as direções simplesmente se formam, queiram os autonomistas ou não. Elas podem ser improvisadas e débeis, ou podem ser estruturadas e dotadas de experiência na luta de classes. Quem verdadeiramente deseja a vitória do proletariado, parece-me, deve inclinar-se para a segunda opção.

As direções, e aqui me refiro a partidos, são as forças políticas que possuem um projeto para a sociedade, que se organizam para vê-lo implementado e que se enveredam nas disputas do poder e da luta de classes. Está claro que, com esta significação, o termo "partido" extravasa o sentido pobre que a ele se costuma atribuir. Nesta ordem de considerações, por exemplo, o Movimento 26 de Julho, antes de se converter em Partido Comunista Cubano, já era um partido. Até mesmo o MST, pasmem, é um partido (não creio que tenha sido assim nos primórdios), diferentemente de outros movimentos sociais que se restringem a um papel de "grupos de pressão" em torno de uma causa específica. O que diferencia, essencialmente, o MST de outros movimentos sociais é o fato de ele ser voltado para um programa destinado à sociedade como um todo (um programa reformista, "democrático-popular"), e que vai além das reivindicações imediatas de reforma agrária.

E mais: as direções são parte das classes sociais. Se um partido do proletariado assume a direção do movimento de massas (e isto quer dizer apenas que as massas preferem sua linha política e que reconhecem as suas figuras públicas como referências legítimas), daí não se infere que a classe esteja sendo de alguma forma alijada do processo. Pelo contrário, é o protagonismo dela que alça à direção um determinado partido - e é claro que as características do partido dirigente terão a sua influência no curso dos acontecimentos. Daí a importância de se debater modelos de organização, mas não se deve ou não haver organização. Para o marxismo, o partido é uma forma organizativa fundamental, e mesmo Rosa Luxemburgo - transfigurada, de modo injusto e bisonho, numa espécie de referência anarquista por pessoas hostis aos leninismo - partilhava desta concepção. Os simpatizantes do anarquismo e do autonomismo que me desculpem por desapontá-los, mas a Liga Spartakus, fundada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, nada tinha de "horizontal" (no sentido pré-político e pós-moderno que se dá a esta palavra), por maiores que fossem as polêmicas com o bolchevismo.

Isto posto, está claro que o marxismo defende que o proletariado, armado com uma direção revolucionária forjada no movimento de massas, deve tomar para si os rumos da história e por termo às mazelas do capitalismo. Muito bem. Algum marxista discorda? Dificilmente discordará abertamente desta formulação. Todavia, muitos dos que assentiriam com a mencionada formulação, na prática, apostas suas fichas em determinados representantes eleitos que gozam da simpatia de amplos setores de massas.

Não é o caso de entrarmos num debate sobre o Estado burguês e o regime democrático burguês. O bom marxista sabe que as instituições do Estado, em última instância, dedicam-se a reproduzir a sociabilidade capitalista e, portanto, a assegurar o domínio da burguesia sobre o proletariado. Mas este bom marxista, mesmo ciente desta realidade, e de modo algum questionando-a (ou talvez questionando de modo sutil, falando novamente em contradições e mais contradições...), está pronto para abrir determinadas exceções. "Sim, é verdade, o Estado e o regime são burgueses, mas há determinados governos que, amparados nas e pelas massas, avançam, acumulam forças, defendem o povo etc. etc. etc.".

É mais ou menos assim que se operam, nestas mentes pseudomarxistas, os milagres de alguns governos latino-americanos. Quero dar maior destaque ao fenômeno do chavismo, dada a palpitante conjuntura da Venezuela.

Há dois tipos de defensores do chavismo: aqueles que dizem que a Venezuela é socialista ou caminha para tanto, de um lado, e aqueles que dizem que o governo, mesmo nos marcos do capitalismo, é progressista, está com o povo, acolhe os pobres para protegê-los dos ricos etc. Os primeiros, sinceramente, não podem ser levados a sério. Quem acredita que a Venezuela passou ou passa por algum processo anticapitalista está pronto para ser levado ao hospício mais próximo. A grande polêmica deve ser travada com os chavistas do segundo tipo.

Os chavistas do segundo tipo, em sua maioria, consideram-se marxistas. Supostamente, partem do pressuposto de que "a emancipação da classe trabalhadora deve ser obra da própria classe trabalhadora". No entanto, agarram-se ao governo venezuelano com todas as suas forças, tomando-o como uma tábua de salvação e, sempre que possível, prestando honras ao falecido Chávez.

Se perguntarem ao um chavista sobre uma determinada medida que traga algum benefício imediato aos trabalhadores, ele prontamente dirá que se trata de uma dádiva generosamente concedida ao povo. Não há luta de classes, não há conquistas transitórias que resultam de mobilizações. Tudo orbita em torno da boa vontade do líder. Ou caso reconheça o papel das lutas, proporá que o governante encarna as conquistas.

O fato é que, para boa parte da esquerda, é muito mais cômodo agarrar-se a um messias, um salvador. Por mais que se concorde com a frase de Marx, não há nada tão encantador, para essa gente, como ver um sujeito de boina e coturno (um verdadeiro fetiche) gesticulando e esbravejando (não mais do que isso) contra o imperialismo, as elites etc. Muito bonito (permitam-se excluir os trajes militares desta estética de esquerda que se criou), mas é uma pena que nada disto sirva para romper com a dominação imperialista e expropriar a burguesia.

Para ser justo, nem sempre a esquerda personalista segue o primeiro orador fardado que aparece. No Brasil, por exemplo, há "marxistas" que se rendem ao "charme" de figuras civis como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Destes, o último foi o mais próximo que tivemos de um governo reformista. Os outros dois foram de direita, e isto deveria ser óbvio, mas como resistir à altivez de verdadeiros "estadistas"? Inexcedível indigência teórica desta esquerda que, tragicamente, não é muito dada aos estudos teóricos, sendo superada apenas, em ignorância, pela direita tradicional. No mais, quando se toma o PT por esquerda, qualquer grupo que não seja fascista ou protofascista pode ser enquadrado como tal, tamanha a licenciosidade emprestada ao conceito.

Tornemos ao chavismo. Eu diria que Chávez foi uma espécie de Getúlio Vargas venezuelano, mas numa época em que há menos margens de manobra para as políticas dos Estados nacionais, ou seja, em que a autonomia relativa dos Estados é menor, sobretudo nos países semicoloniais como a Venezuela. Assim como Vargas, Chávez chega ao poder num contexto de divisão das classes dominantes e de agitação no seio das classes dominadas. Cenários assim, em regra, desembocam naquilo que se conhece por bonapartismo.

Há momentos em que as classes dominantes não logram estabelecer um mínimo de harmonia entre si para formar um bloco estável de dominação. São instantes de fragilidade que podem, inclusive, caracterizar uma situação revolucionária, caso outros fatores se combinem. Todavia, se as massas não estão em condições de fazer uma revolução, e se o impasse entre "os de cima" permanece, pode ser que surja um "árbitro" das classes dominantes para administrar a situação.

O "árbitro" é o bonaparte, uma figura que, apesar de ser alheia às disputas fracionais, possui grande interesse no cenário político (ou melhor, na ordem das coisas). A autoridade política do bonaparte repousa não nas classes e frações (já que se trata justamente de um "tertius"), e sim no prestígio perante setores de massa. Não foi por acaso que Marx fundou a ideia de bonapartismo a partir de Napoleão III, que dissolveu o parlamento francês e, em seguida, instituiu o sufrágio universal. O bonaparte reporta-se diretamente às massas, nelas se apoiando para lidar melhor com as frações da classe dominante em luta fratricida (desconfio que, depois desta descrição, já existam "marxistas" começando a simpatizar com Napoleão III...).

A ação do bonaparte é o último recurso da ordem para conservar as condições necessárias às relações de produção, e é muito sintomático que, na Venezuela, o líder bonapartista tenha saído da caserna. Servindo-se de sua popularidade, o bonaparte dialoga com as massas para apaziguá-las, para que se acalmem enquanto as classes dominantes resolvem suas diferenças internas. E quando elas não acatam a palavra do chefe, utiliza-se da violência nua e crua.

Na Venezuela, há setores de massa que se apegam ao governo, notadamente as camadas mais pobres, beneficiadas por programas sociais foquistas à la FMI, e parte do sindicalismo, que foi cooptada politicamente. Quanto ao sindicalismo alternativo e insubordinado, este possui um longo histórico de repressão sob o chavismo.

Contra o chavismo, insurge-se uma pequena burguesia debilmente organizada e dirigida por um setor burguês - o que não quer dizer que os governos chavistas sejam "antiburgueses". Os investimentos do imperialismo na Venezuela andam muito bem, obrigado, e a PDVSA segue com os seus lucros. Não se deve olvidar, aliás, que o capital de Estado é uma das formas de propriedade do capital, de tal sorte que é um erro tremendo imaginar que a estatização de empresas seja um passo em direção do socialismo. Sem controle operário e planificação econômica, a empresa estatal apenas substitui a figura do burguês por um burocrata.

Num contexto como este, a política condizente com o marxismo só pode ser a da organização política independente junto à classe trabalhadora. Nem apoio ao chavismo, nem apoio à oposição de direita. Insistamos: "A emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora".

Mas para que apegar-se a este "preciosismo" quando se pode jurar lealdade e amor eterno a um herói fardado, não é mesmo? Como negar suporte a Maduro, herdeiro direto do "comandante"? Esta esquerda personalista sistematicamente subestima o papel das massas, imaginando (mesmo que inconscientemente) que elas só servem para votar no chavismo ou para ir às ruas em defesa do governo. A importância de sua auto-organização acaba sendo totalmente esquecida. Afinal, o que é a auto-organização das massas perto da imponência de uma divindade "bolivariana" com seu cavalo e sua espada?

E é mesmo curioso que os idólatras chavistas sequer desconfiem do charlatanismo deste discurso "bolivariano". Não há nada mais típico do reacionarismo do que prometer ao povo as "glórias" de um passado que se usa e abusa com tanta licença poética.

Aos ativistas que depositam esperanças honestas no chavismo, convido-os a refletirem sobre a seguinte questão: diante da crise social da Venezuela (não, prezados fanáticos, a Venezuela não é o paraíso na Terra), qual sujeito social pode apresentar uma saída? É óbvio que a direita tradicional, anterior ao chavismo, não é a resposta. Tampouco Maduro e o PSUV (um partido criado em torno de Chávez), que estão no governo e se mostram incapazes de satisfazer as necessidades mais sentidas da população.

Construir um campo alternativo não é tarefa fácil. É muito mais fácil transferir a Maduro uma procuração com plenos poderes para salvar o povo do sistema no qual ele opera como engrenagem-chave. É muito mais cômodo furtar-se à discussão sobre o bonapartismo e jurar a si mesmo que o sucessor de Chávez é um enviado dos Céus que proverá a todos. Contudo, a elaboração marxista não pode folgar com as comodidades almejadas pelos descrentes no poder das massas. É claro que também é dado aos chavistas "oficializar" sua ruptura com o marxismo, para que possam dizer simplesmente que se contentam com as "misiones", com discursos inflamados e com os adjetivos que seu líder atribui aos presidentes dos EUA. Seria uma saída honesta, pelo menos. Indigente, mas autêntica, sem associar o marxismo a semelhante rebaixamento de horizontes.

É preciso ao menos esboçar uma explicação sobre o motivo que leva os chavistas e afins ao culto à personalidade. Em minha opinião, para além de insuficiência teórica, trata-se de uma profunda descrença no proletariado. Quanto mais se duvida que a classe trabalhadora pode chegar ao poder, tanto mais se projeta num indivíduo o papel redentor. Resta imaginar que algum paladino valente assuma para si a causa do povo e faça a revolução (ou "algo próximo disto") em nome do povo. Como ele não consegue, há dois caminhos: apelar, fingindo que o socialismo está em curso, ou imitar Cândido, personagem de Voltaire, afirmando-se que este é o melhor dos mundos possíveis. Não nos enganemos, portanto: o chavismo é conservador. Por ele se pode bradar contra a direita clássica, mas não se pode pensar o proletariado como sujeito potencialmente revolucionário. Para os pequeno-burgueses de esquerda que se dão por satisfeitos em se diferenciar da "classe média" venezuelana, branca e reacionária, já está de ótimo tamanho. Agora, quando se pretende conspirar contra o capitalismo, é preciso fazer um pouco mais. É preciso pensar dialeticamente, e não com o estômago. É preciso ler a realidade sob o prisma das classes sociais e das relações de produção, e não meramente sob o prisma do mapa eleitoral e das faixas de renda. É preciso, inclusive, cogitar a destruição do Estado burguês, e para esta tarefa não se pode contar com a cúpula das Forças Armadas, mesmo que ela fabrique duzentos Hugos Chávez.

Obviamente, a revolução não está na ordem do dia na Venezuela. No entanto, dado que não se pode superar o capitalismo sem uma revolução, e dado que a superação do capitalismo é o objetivo dos marxistas, somos obrigados a pensar em coisas assim, mesmo que de um ponto de vista puramente estratégico. Mas para os chavistas só há uma estratégia: eleger e reeleger seus chefes. Qualquer elaboração política que passe ao largo deste cálculo é rechaçada. Isto tem um nome: cretinismo parlamentar.

Além disso, o personalismo chavista não deixa de se reportar a uma concepção burguesa de mundo. Hegel não disse que Napoleão era o espírito do mundo montado num cavalo? Ora, os chavistas pensam de modo análogo no que diz respeito às lutas sociais. Os impasses enfrentados pela sociedade, nesta visão, só podem comportar uma resposta individual. E quando se pensa no destino da população em conjunto, a resposta é a aposta num indivíduo. Uma péssima aposta: os chavistas sequer suspeitam de que Chávez e Maduro são muito mais o dique do que o desaguadouro do movimento de massas.

Já passou da hora da esquerda superar o culto à personalidade, esta ideologia reacionária que só serve para desarmar a classe trabalhadora. O personalismo é tão miserável que chega a ser pré-político: abre-se mão de uma análise real da conjuntura e da estrutura social em nome dos traços de personalidade de um dado governante, como se suas intenções valessem mais do que seu papel efetivo nas relações sociais enquanto agente de Estado. Ou colocamos as coisas em termos de política, orientando nossas ações por programa, tática, estratégia e princípios - sempre com foco nas massas e na organização classista - , ou seremos reféns do primeiro bufão que se proclamar como libertador da pátria. Indigna condição de uma esquerda que abre os braços para o bonapartismo, tomando-o por aliado, quando não por guia! Autoemancipação revolucionária das massas ou messianismo laico, eis a disjuntiva.

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