sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Entendendo o obscurantismo

"Viva la muerte, abajo la inteligencia", dizia o general franquista Millán Astray. Eis uma brutal síntese do fenômeno conhecido como obscurantismo, e que se apresenta de diversas maneiras na vida social.

Não há nada tão desesperador como ler comentários de internet sobre temas como beijo gay, violência policial, segurança pública, direito de manifestação e direitos humanos. É como ingressar numa sessão de tortura psicológica, numa terapia de descrença na humanidade. Eis o tipo de sensação que se tem.

Por que o termo obscurantismo? Trata-se de um contraste com a tradição iluminista que envolveu as revoluções burguesas e floresceu ao longo do desenvolvimento do modo de produção capitalista, em sua luta ferrenha contra os resquícios de feudalismo nos séculos XVII e XVIII na Europa.

Em sua incursão revolucionária, a burguesia opôs a luz da filosofia e da ciência modernas às trevas da Idade Média. Contra o absolutismo e os privilégios do Antigo Regime, a classe ascendente reivindicou as liberdades democráticas que formam o que hoje se entende por Estado de Direito. Neste processo, forjou-se uma forma política estatal que se adequava aos imperativos das relações de produção capitalistas, mas que cumpria um papel progressista na história.

No campo da filosofia política, o grande legado das revoluções burguesas foi o liberalismo político, se compararmos, é claro, com as teorias absolutistas de Jean Bodin e companhia. Este liberalismo, pretendendo sepultar o passado feudal, trouxe avanços civilizatórios inegáveis para a época, como a defesa da igualdade perante a lei, as garantias individuais contra abusos das autoridades, o direito de defesa nos processos, o Estado laico etc.

É evidente que, hoje, seja nas periferias das metrópoles brasileiras, seja nos protestos de rua, estas garantias do Estado de Direito tornam-se letra morta. No entanto, é positivo que se possa qualificar, ainda, que determinadas ações por parte do Estado são ilegais, mesmo que a responsabilização dos agentes seja de difícil verificação.

O que importa, historicamente, é que o período das revoluções burguesas consagrou determinados direitos civis e políticos que, no seu conjunto, moldam aquilo que hoje se chama democracia - uma democracia liberal e burguesa, mas diferente de um regime ditatorial ou totalitário.

Mas ocorre agora que os tempos são outros. A sociedade burguesa já não produz pensadores como Voltaire, Rousseau e Kant. Vivemos na época de decadência do capitalismo, uma época em que este sistema social, longe de impulsionar a humanidade rumo a patamares civilizatórios superiores, propicia o exato oposto: a barbárie.

A decadência do capitalismo enquanto modelo civilizatório é visível na mudança do discurso dominante nas sociedades burguesas. Num primeiro momento, de ascensão, o mote era "liberdades até o limite da ordem" - e não nos iludamos: o Termidor foi a prova inequívoca de que mesmo a antiga burguesia progressista prezava muito mais por seus interesses econômicos do que pela participação popular na vida pública. Hoje, momento de barbárie, o mote é outro: "ordem". E ponto final. Já não se defende as liberdades democráticas.

Daí o termo obscurantismo. Os marcos da civilização capitalista sob os quais ela se afirmou contra o feudalismo repousam num discurso filosófico iluminista; atualmente, porém, a "direita", defensora do capitalismo, não reivindica a laicidade do Estado, o direito de defesa processual e as garantias gerais do indivíduo contra o Estado. Aliás, não só não reivindica como as despreza, cuspindo naquilo que diferencia o Estado de Direito do Antigo Regime feudal.

É neste sentido que um importante setor direitista caracteriza-se como pré-iluminista, como hostil aos fundamentos daquilo que a própria burguesia chamou da Idade das Luzes. Eis aí o reacionarismo na sua forma mais quintessenciada: o anseio de retorno a situações anteriores às realizações do liberalismo político.

Curioso notar que, nos séculos XVII e XVIII, o liberalismo era postulado coerentemente na política e na economia. Mercado e democracia liberal faziam parte de uma mesma fórmula, coisa que já não se vê ultimamente. Basta o mercado.

Nossa direita contemporânea só fala em liberdade para se opor àquilo que entende por comunismo. Sua insuperável ignorância, tragicamente, a impede de compreender que o comunismo, tal como defendido pela teoria marxista, jamais existiu, e que experiências como a URSS stalinista não podem falar em seu nome. Nenhum direitista atreveu-se a estudar a crítica marxista da União Soviética e de outros regimes aos quais se atribuiu a alcunha de "socialismo real".

E quando fala em comunismo, esta direita associa este temível fantasma ao PT, fazendo-o por motivos diferentes. Há aqueles que são obtusos o bastante para imaginar que o PT conspire contra o capitalismo, mesmo que a burguesia inunde suas campanhas eleitorais de dinheiro, e mesmo que este partido, em retorno, adote um programa neoliberal (por mais que os apologistas lancem mão de eufemismos como "pós-neoliberalismo", "neodesenvolvimentismo", "social-liberalismo" etc.); há outros que, olhando para o passado, notam que o Partido dos Trabalhadores, certa feita, foi um viveiro de correntes socialistas mais radicais, temendo uma espécie de retorno às origens; e há, por fim, os que deliberadamente usam da imagem do PT para desmoralizar a esquerda como um todo. O senso comum, mesmo não associando o PT ao comunismo, toma-o por um partido de esquerda, de tal sorte que a maior parte dos seus erros são creditados ao espectro ideológico em que ele supostamente se insere.

Mas tornemos ao obscurantismo, esta negação das luzes burguesas do pretérito. Devo advertir desde logo que não tomo os obscurantistas por adversários dignos. Digo isso pelo seguinte: uma vez que vivemos numa sociedade capitalista, o mínimo de padrão civilizatório que se pode exigir num debate é aquele em que se fundamenta historicamente o capitalismo. Retroceder para aquém da civilização capitalista é algo que deve estar fora de cogitação. Por isto, creio-me no direito de não considerar como respeitáveis as posições que se mostram pré-iluministas.

O que isto significa concretamente? Significa que a defesa do mercado, da propriedade privada e da lógica do lucro, por exemplo, é respeitável em termos civilizatórios, por maiores que sejam as discordâncias. No entanto, quando se afirma que a culpa do estupro é da mulher, que gays e lésbicas são doentes, que os negros devem sofrer porque um suposto antepassado bíblico ficou nu na frente do pai etc., a situação muda de figura. Todas estas afirmações ferem postulados básicos, e burgueses, de igualdade formal e laicidade do Estado. Quer-se com elas discriminar negativamente  um grupo, ou seja, impor-lhe uma condição social inferior, oprimi-lo e humilhá-lo, o que é inaceitável.

Quando vemos o que se passa no caso do jovem que foi mutilado e amarrado numa via pública do Rio de Janeiro por um bando de "justiceiros", temos mais uma hipótese deste tipo, e até pior. Chegamos ao ponto em que determinados membros de nossa sociedade burguesa celebram um evento no qual se nega aquilo que é essencial ao Estado burguês: o monopólio do uso legítimo da força física.

Este monopólio deve-se, historicamente, à luta contra o poder feudal; para que a burguesia pudesse fazer valer seu capital e suas mercadorias contra os feudos, era preciso destruir os aparatos locais de repressão e julgamento; era necessário aniquilar os poderes particulares dos senhores feudais e fundar uma autoridade única, perante a qual todos são cidadãos formalmente indistintos, para que a igualdade formal do mercado pudesse realizar os mecanismos capitalistas de exploração da força de trabalho.

E ocorre que, em pleno século XXI, resiste ainda um ranço saudosista com relação à época anterior ao Estado moderno capitalista, à época da justiça privada! É surpreendente como estes adoradores hodiernos do capitalismo ultrajam a memória do velho Kant, notável filósofo burguês, entusiasta da construção de uma sociedade civil no sentido liberal mais pleno!

Hoje já não temos Kant, nem Voltaire e nem Rousseau. A burguesia nos oferece mentes de qualidade deveras inferior, dando testemunho da degradação geral do sistema que a nutre. Em contraste com os apelos de tolerância vindos de um Voltaire, temos agora a sede de sangue de uma Rachel Sheherazade, o ódio nada cristão de um Marco Feliciano e os delírios de um Jair Bolsonaro. Contudo, não são estas figuras medíocres que preocupam, e sim a sua base social.

Se Rachel Sheherazade é âncora de um telejornal, não é simplesmente por suas boas relações com seu patrão, muito menos por seu talento inexistente (desde Datena, admite-se o termo "jornalista" para qualquer bufão capaz de vomitar lugares comuns e barbaridades genéricas). Apresentadores desta estirpe alimentam o sentimento de medo de uma burguesia débil, frustração de uma pequena burguesia irremediavelmente confusa e de angústia de alguns setores desorganizados do proletariado.

De todas estas classes, destaca-se a pequena burguesia e sua relação de "amor não correspondido" com o capitalismo: estes humildes proprietários ou empreendedores não entendem que o modo de produção capitalista funciona para o grande capital, não para o pequeno. Por mais que idolatrem os valores burgueses (a propriedade, a exploração do trabalho, o dinheiro, o individualismo), jamais terão, sob tal forma de sociedade, a segurança econômica que almejam.

A esta pequena burguesia se unem alguns setores do proletariado que, por força da divisão entre trabalho intelectual e trabalho material, e por seu pertencimento ao primeiro domínio, julgam-se superiores a seus irmãos proletários. Unem-se num vale de lágrimas e lamentações. Os pequenos lojistas e os donos do próprio escritório, assim como os carreiristas do mercado de trabalho intelectual, nutrem uma fé muito sincera pelo capital. Tragicamente, o ingrato não lhes retribui os votos, de tal sorte que a prosperidade individual torna-se cada vez mais difícil. O capitalismo, repito, é o jogo do grande capital, não há lugar ao sol para os pequeninos. Mas eles não entendem e, revoltados, projetam a culpa de suas desgraças nas forças que se opõem aos seus valores.

É o que explica a fúria incontrolável de alguns destes indivíduos contra o comunismo. "Se as coisas vão mal", pensam, "não é porque o capitalismo, o sistema existente e operante, deixa de contemplar a todos. É porque existem seres perversos que se ocupam de pervertê-lo e até mesmo (que horror!) de conspirar contra ele". E como no Brasil não tivemos aquilo que se acusa de comunismo, resta descontar em quem mais se aproxima simbolicamente. Escolheram o PT como bode expiatório por conta de seu passado, mas seus serviços à burguesia são tão generosos que, atualmente, só se consegue estigmatizá-lo a partir de teorias ridiculamente conspiracionistas. Mas o estigma, por mais distante da realidade que seja, serve para deslegitimar a esquerda em geral (da qual o PT deixou de fazer parte, ainda que convenientemente o reputem como representante).

Mas é claro que o obscurantismo não se resume ao ódio desmedido à esquerda. Nós o encontramos, como eu disse antes, nas situações de afronta às premissas iluministas e liberais. O grupo é bem variado: separatistas paulistas, arianistas, antinordestinos, skinheads, fascistas, fanáticos religiosos e tantos outros. A eles podemos adicionar agora os "justiceiros", cujas ações bárbaras são apoiadas por âncoras de jornal e por uma massa de comentários raivosos nas páginas de internet. Comentários que, em regra, permanecem recônditos de tão inconfessáveis, mas que pululam quando alguma figura pública do obscurantismo mostra o caminho.

Eu diria que o "motor" do obscurantismo é uma postura que se poderia denominar "conformismo ativo", e que consiste na repulsa resoluta a quem se empenha em transformar (e com isso transtornar) a sociedade. Não se trata da mera indiferença, do marasmo, mas da condenação moral contra quem se levanta contra a sociabilidade existente de alguma maneira. O capitalismo é bom, imagina-se, mas há quem o estrague. E quem o estraga são aqueles que não se ajustam a ele, seja como militantes engajados, seja como indivíduos marginalizados. Além dos "políticos", embora deles só se fale mal; raramente suas cabeças são exigidas.

Quem se opõe às "virtudes" da sociedade (capitalista) existente, neste raciocínio, só pode ser mau. Os "desajustados" abusam da sociedade, cabendo a esta reagir. Espera-se que o Estado possa dar conta de se livrar destes seres "inconvenientes". No entanto, tantas são as contradições sociais  do nosso capitalismo decadente (e os obscurantistas não têm a menor ideia disto) que os descontentes com a ordem, bem como os marginalizados por ela, não param de crescer em número. Diante deste fato, a resposta vislumbrada é a dos Alckmins deste Brasil: polícia e mais polícia.

E se o policiamento não basta, logo se aplaude a iniciativa dos cidadãos de bem que decidem fazer (in)justiça com as próprias mãos, pessoas muito conscientes de seus deveres. Seus métodos são um tanto quanto "rudes", mas cumprem o papel. E os obscurantistas nada temem com a escalada de violência pública e privada (via "justiceiros"), pois só os maus são atingidos - do mesmo modo que se acreditava, farisaicamente, que somente os "depravados" homossexuais poderiam contrair o vírus HIV. Não lhes ocorre que um dia podem ser tomados, acidentalmente, por uma destas figuras a quem desejam tanto mal. Também não lhes ocorre que justiça possa ser algo diferente de vingança...

Firmes nesta crença, os obscurantistas insistem em não pensar racionalmente os dilemas da sociedade contemporânea. "Que disparate imaginar que a maior parte do crime tenha raízes na miséria social e não na pura e simples maldade inerente a determinadas pessoas (sobretudo no que tange aquelas com doses a mais de melanina...)"! "Como são estúpidos os sociólogos e criminólogos que propõem uma explicação científica para problemas como estes"! O obscurantista não está interessado em entender, mas apenas em condenar e reprimir; à maneira de um troglodita, dispõe-se a resolver questões complexas a golpes de tacape, tendo a pachorra de julgar como bárbaros aqueles a quem esmaga. "Viva la muerte, abajo la inteligencia".

4 comentários:

  1. me deparei hoje com este texto maravilhoso e tão atual. obrigado por escrevê-lo.

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  2. Artigo excelente e pre-monitorio.Em 2014 o Autor já via as nuvens negras que formavam-se no horizonte

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  3. Viva a inteligência, abaixo o comunismo! Escreve muito bem essa pessoa mas é leviano e equivocado.

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