O espectro do golpe ronda a
política brasileira. O que é, afinal, um golpe? Formou-se um senso comum na
esquerda segundo o qual esta categoria corresponderia a uma ruptura
institucional que poderia se dar com ou sem o concurso das forças armadas. Haveria,
assim, o golpe em sentido clássico, ou seja, uma quartelada, e uma versão mais
amena, mais sutil, na qual haveria uma quebra da legalidade por forças
políticas da esfera civil. Um impeachment sem lastro jurídico seria, nessa
acepção, uma prática golpista, uma quebra da institucionalidade.
Isso é o que diz o senso comum da
esquerda atual. Está em falta, no entanto, uma análise propriamente marxista do
fenômeno do impeachment e da própria noção de golpe. Propomo-nos a trazer
alguns poucos avanços nessa direção, uma vez que se trata de algo grave: saber
se estamos diante ou não de um movimento golpista é uma percepção fundamental
na luta de classes.
Antes de discutir os temas do
impeachment e do golpe, precisamos ter uma caracterização marxista muito bem
definida acerca da democracia liberal, que é o regime que dá as referências
para toda a discussão. É preciso conhecer bem a natureza e as formas da
democracia liberal para que se possa apresentar uma visão isenta de fetiches e
de histeria, sobretudo quando a maior parte da intelectualidade, em geral
inorgânica em relação ao proletariado, aderiu prontamente à tese de que há um
golpe “branco” (não entraremos aqui na questão do racismo linguístico) em curso
sob a forma de impeachment.
A democracia liberal é a forma
pela qual o Estado se manifesta em condições de normalidade, é o regime
preferencial, por assim dizer, da ordem social capitalista. Esse regime é
caracterizado centralmente pelo sufrágio, que consiste no elo principal entre a
sociedade civil e o Estado, entre o domínio dos interesses privados e o domínio
do interesse público. E a contrapartida do sufrágio é a representação parlamentar,
por meio da qual os partidos da ordem, representando as frações de classe e
determinados grupos de interesse, disputam entre si os rumos da política
estatal.
No sufrágio, cada indivíduo é
chamado a exercer sua cidadania, a colocar-se como um átomo indiferenciado no
processo decisório nacional, no exercício da soberania popular. Mas isso é
feito de modo que cada pessoa se despe de sua condição de classe e se nivela
perante as demais. Os votos dos capitalistas valem tanto quanto os votos dos
trabalhadores, predominando, assim, a igualdade jurídica formal. Contudo, é aí
que reside a máxima ilusão da democracia liberal, pois ela cuida de transferir
essa “vontade popular” consubstanciada em milhões de votos atomizados para o
âmbito da representação parlamentar, ou seja, para um espaço de Estado que é
constituído para organizar as relações entre os representantes das classes e de
suas frações, para ser um balcão de negócios dos partidos da ordem atrelados a
interesses determinados.
Por essa lógica, a democracia
liberal pretende sequestrar a política, monopolizá-la, confiná-la ao terreno
institucional. As mudanças políticas devem ser reivindicadas pelo voto nas
urnas, e de vez em quando se admite algumas exigências por fora do calendário
eleitoral, mas desde que não comprometam a chamada ordem pública, isto é, desde
que não abalem o cotidiano da dominação capitalista.
Em adendo, a democracia liberal
trabalha com a chamada separação ou divisão dos poderes. De fato, o poder de
Estado se legitima pelo sufrágio, mas o seu exercício se pauta por regras
constitucionais que definem uma divisão de trabalho no interior do aparato
estatal, de tal sorte que, segundo os liberais, chegar-se-ia a um mecanismo
harmônico de freios e contrapesos, o único modo de se evitar o arbítrio e a
tirania. É por isso que as leis, expressão peculiar do poder de Estado, passam
por um processo de criação previamente estabelecido pelos órgãos legislativos,
são sancionadas e aplicadas pelos órgãos executivos e submetidas a apreciação
judicial, em caso de lide, pelos órgãos jurisdicionais. Fizemos aqui uma
simplificação um tanto rude, mas que serve ao nosso propósito de ilustrar essa
organização funcional do exercício do poder nas democracias liberais.
Numa leitura marxista, podemos
identificar que, nas democracias liberais, destaca-se o parlamento como
aparelho de Estado dominante no interior da constelação de aparelhos
apresentada pelo regime. Nas variações presidencialistas, o parlamento se
encontra um tanto eclipsado, mas ele não deixa de dar a última palavra no
funcionamento efetivo do poder. E em caso de crises políticas, de impasse entre
as forças atuantes, as engrenagens do aparato mais desarranjadas acabam cedendo
lugar a outras que se encontram menos afetadas no jogo político. É assim que
vemos, por exemplo, a entrada em cena, com destaque acima do normal, de órgãos
menos ligados às correntes partidárias (se não individualmente, ao menos
institucionalmente), como o Judiciário e determinadas instituições policiais.
Entretanto, seria um erro
imaginar que o Judiciário ocupa apenas uma posição auxiliar no regime em
questão. Isto é verdade para o jogo político, mas não para o cotidiano da luta
de classes. Na democracia liberal, prevalece a judicialização dos conflitos, no
sentido de se enquadrar os antagonistas sociais como sujeitos jurídicos que
devem observar os direitos alheios e que devem evitar o abuso de seus próprios
direitos. Assim como no sufrágio, as classes desaparecem, e o que se tem nesse
arranjo institucional liberal é apenas um confronto entre cidadãos litigantes,
pouco importando se pertencem a uma classe explorada que busca resistir à
exploração ou se pertencem a uma classe exploradora que pretende ampliá-la. E
cabe ao Judiciário, nesses conflitos, colocar-se como um terceiro pretensamente
imparcial e decidir a lide, fazendo com que a luta de classes sempre seja
desempenhada no terreno seguro do Estado de Direito.
No Judiciário, a repressão política dá-se com ares de punição a crimes comuns. Em seu suposto "pluralismo", a democracia liberal não reconhece crimes políticos. Não há, como nas ditaduras, a figura da subversão e dos inimigos do Estado. Mas isso não quer dizer que ela seja generosa com os movimentos contestatórios que estremecem a mansuetude da dominação burguesa. O que ela faz é enquadrar movimentos políticos em categorias do direito penal comum, ou seja, adotando um modo de reprimir que é aplicável virtualmente a qualquer cidadão, sem diferenciações ou privilégios. Esse enquadramento, todavia, é conduzido pelo aparato policial e chancelado pela jurisprudência contra a única classe que tem necessidade de mobilizar-se constantemente, o proletariado. Assim sendo, a violência "democrática", "liberal", é uma forma dentre outras de violência de Estado, e que mesmo adotando um discurso neutro e universal, só pode ter como destinatário a classe subalterna. É a igualdade jurídica formal a serviço de uma coerção estatal absolutamente desigual.
Para completar esse panorama
geral, é indispensável recordar um fato que muito se quer esquecer: a
democracia liberal, enquanto um regime político determinado, enquanto uma
manifestação concreta do Estado, não deixa de ser Estado, ou seja, não se furta
ao cálculo de interesse de classe e de poder. Ela não perde, assim, as suas
atribuições repressivas e ideológicas, apenas as processa à sua maneira.
Tampouco ela é indiferente ao nível de intensidade da luta de classes e às
peculiaridades de cada formação social, o que envolve, inclusive, questões raciais,
de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade etc.
Ao levarmos isto em conta,
teremos uma visão muito mais sóbria a respeito da democracia liberal. Mais do
que isso: teremos condições de compreender porque os regimes democráticos mundo
afora, inclusive nos países mais desenvolvidos, conviveram longamente com a
escravidão, com a segregação racial, com a exclusão de direitos das mulheres, com
o colonialismo, com o genocídio de povos indígenas, com a suspensão de certas
liberdades etc. Enquanto forma política de dominação numa dada formação social
capitalista em condições de normalidade, isto é, sem abalos que levem a
soluções bonapartistas, ditatoriais ou fascistas, por exemplo, a democracia
liberal condensa em si as determinações políticas do seu tempo e lugar e as
acomoda, não sem contradições, dentro da sua aparelhagem institucional.
Em sua apologia à democracia
liberal, os ideólogos do regime, seguidos de perto pela esquerda reformista,
deixam de lado que esse modelo institucional, apesar de apregoar a igualdade
formal, é de todo compatível com as mais aberrantes iniquidades. Veja-se, por
exemplo, a questão LGBT: trata-se um amplo segmento populacional que se
encontra privado de diversos direitos civis na maior parte do mundo pelo
simples fator de sua orientação sexual. E o que dizem os reformistas? Que a
democracia ainda não amadureceu o suficiente, mas que, cedo ou tarde, ela
contemplará plenamente essas pessoas. Não lhes perturba o fato de um regime que
se pretenda “democrático” possa admitir esse tipo de discriminação por tanto
tempo.
E isso não é tudo. Ao ignorar a
simples circunstância de que a democracia liberal traz em si todas as
determinações da forma política do Estado, os liberais e os reformistas
novamente são obrigados a observar casos de violência estatal ou de condutas
ilegais por parte dos próprios agentes do Estado como um problema de falta de
consolidação da democracia. Esse regime, segundo eles, ainda não atingiu a sua
plenitude, a sua pureza, mas quando isso ocorrer, os agentes policiais e os
representantes políticos estarão completamente subordinados à lei, sob pena de
serem sancionados pelo Judiciário. Eis uma visão romântica e idílica sobre o
regime político atual, uma visão que despreza o fato de que o Estado
necessariamente possui uma vida dupla, de que ele, enquanto aparato orientado
por um cálculo de poder e interesse, transita entre a legalidade e a
ilegalidade conforme a conveniência. É assim, a título ilustrativo, que se dão
as políticas que deliberadamente extrapolam o uso da força contra manifestantes
e contra a população pobre: trata-se de um objetivo político de intimidação que
não aparece em nenhum programa de governo e em nenhum código disciplinar, mas
que faz parte do funcionamento estatal regular.
Pois bem. E o que essas reflexões
sobre a democracia liberal podem agregar para a compreensão das noções de golpe
e impeachment? Em primeiro lugar, podemos concluir que o cometimento de
ilegalidades pelo próprio Estado não significa uma ruptura no padrão de
funcionamento do regime. As ações estatais que ultrapassam os limites da
legalidade, mesmo sob a democracia liberal, fazem parte da lógica de Estado e
são cotidianas. O que ocorre é que, em situações de crise política, o sistema
político (a constelação partidária em sua correlação de forças interna, em seus
compromissos e disputas) revela as suas entranhas, seus nervos ficam expostos.
Negociações em torno de cargos e dotações orçamentárias, articulações entre
parlamentares e membros de cortes superiores, alianças e traições, subornos e
chantagens, enfim, toda a crueza do jogo político nos marcos da ordem se mostra
ao mundo, saindo de seu confinamento subterrâneo. Esta é a vida rotineira do
Estado, e nem por isso a democracia se transforma em outro regime. Ela é aquilo
que ela se apresenta normalmente, mas também, e principalmente, aquilo que ela
esconde, e que, por vezes, vem à tona.
Nesse sentido, não se pode
imaginar que um ato ilegal no jogo político seja um golpe, como se fosse algo
que questionasse toda a lógica do regime liberal. Um golpe, para ser, de fato,
uma quebra no padrão de funcionamento desse regime, exige uma intervenção
externa aos aparelhos de Estado que conduzem o jogo político na democracia
liberal. O simples desrespeito às regras do jogo se choca com a película do
liberalismo, com a sua imagem aparente, mas em nada prejudica o seu conteúdo, e
que consiste nas rivalidades entre as frações capitalistas e no seu
enfrentamento contra os interesses do proletariado. É por isso que somente uma
intervenção militar poderia, com efeito, atentar contra o padrão de
funcionamento dos aparelhos de Estado sob uma configuração liberal.
Cumpre perceber, pois, que um
impeachment mal fundamentado juridicamente não é mais golpista ou menos
golpista do que uma decisão do STF que contrarie uma disposição constitucional,
e como já ocorreu em diversas oportunidades. A observância das atribuições e da
divisão liberal dos poderes dá corpo à normalidade do regime democrático, pois
é esse critério formal que instrui esse tipo de regime. Diferentemente de uma
intervenção militar não autorizada, que reposicionaria o aparelho dominante (“troca”
do parlamento pelas forças armadas) sem uma tramitação institucional interna e
autorregulada.
Além do mais, não se poderia
argumentar que o impeachment contraria o princípio do sufrágio, dado que a
deposição do governante por essa via se dá a partir de um órgão composto por
representantes eleitos. Do ponto de vista formal, a mesma soberania que elegeu
um presidente elegeu, também, o congresso que pode vir a depô-lo. Num contexto
em que os reformistas se tornaram os campeões do liberalismo político, é estranho
que não se atenham a isso.
Por fim, deve-se notar que o
impeachment é um processo fundamentalmente político, e que mesmo que a
constituição indique a hipótese de crimes de responsabilidade, isto se trata,
novamente, apenas da aparência do mecanismo. Afinal, a apuração
técnico-jurídica de determinado crime incumbiria a um órgão judicial, como se
infere da divisão interna de trabalho no interior do Estado. Um julgamento que
se dá por parlamentares só poder ser um julgamento político, pois o seu
resultado e mesmo a sua tramitação serão o produto não de um exame técnico, mas
de uma dada correlações de forças partidária. A imputação de prática ilegal é
apenas uma justificativa formal para chancelar uma linha política de manutenção
ou derrubada de um presidente. Não reconhecer isso é desconhecer a natureza dos
órgãos parlamentares e nutrir uma concepção irreal do jogo político – o que
justamente se vê agora por parte daqueles que fizeram da realpolitik uma profissão de fé.
Se ao parlamento é dado
interromper um mandato presidencial, isto ocorre porque a esfera parlamentar
congrega o conjunto das representações burguesas, instituindo-se como uma praça
comum de todos os grandes capitalistas, uma arena onde os principais capitais
podem se fazer representar. Mesmo num modelo de presidencialismo de coalizão,
não há espaço suficiente no executivo para se agregar todas as correntes de
interesse burguesas. Por essa razão, a constituição confere ao legislativo, a
seara burguesa mais universal na sua representatividade, a prerrogativa de
destituir a presidência. E esta, por sua vez, só será destituída caso se
encontre numa posição de isolamento político e social. Pouco importa, sob o
ponto de vista da luta real entre os antagonistas no sistema político, se houve
cometimento de crime ou não. Um governo que cai é um governo que não se
sustenta, que carece de aliados em número suficiente para mantê-lo no jogo. A
escolha dos motivos “oficiais” do impedimento é secundária. O que importa, na
realidade, é a disputa encarniçada pelo poder.
Com essas observações, queremos
demonstrar que, na perspectiva da sagrada democracia liberal dos reformistas,
não há nenhum golpe em curso. Podemos ter motivações políticas para nos opormos
ao impedimento, sobretudo quando se trata de “trocar seis por meia dúzia”, já
que, no caso brasileiro atual, Dilma e Temer apresentam o mesmo projeto para o
país (por mais que as bases do governismo insistam em ser indulgentes com o
neoliberalismo petista e intolerantes com o neoliberalismo alheio). Outra
coisa, muito diferente, é anunciar um golpe. Proclamar aos quatro ventos que a
democracia está ameaçada é não só um erro teórico, como também um argumento de
terrorismo político, uma aposta frentepopulista no medo ancestral do retorno
das elites – como se elas tivessem abandonado seu posto em algum momento.
E para que não haja margens para
interpretações desonestas sobre o que estamos afirmando: o impeachment é, em
qualquer situação, uma saída conduzida pelas classes dominantes. Ele é uma
ferramenta da democracia liberal, tanto quanto seus órgãos e suas instituições,
e que resulta da divisão dos poderes, da própria proeminência do parlamento
sobre o executivo em última instância e até mesmo do próprio sufrágio. Mas cuidado,
reformistas, com a crítica radical do impeachment, pois ela pode levar à
crítica radical do liberalismo político que lhes é tão caro!
Não banalizemos, pois, o termo “golpe”,
tampouco confundamos as manobras e trapaças nas lutas interburguesas com as restrições
às liberdades das massas, que já são mínimas. Não há nenhuma fração burguesa
interessada em promover tais liberdades – nem por parte do bloco encabeçado
pelo PT e nem por parte dos segmentos da direita mais tradicional. Muito pelo
contrário. Todos esses grupos, que hoje travam um embate feroz, estiveram
unidos para restringir ainda mais os direitos de manifestação e organização das
massas (fortalecimento da ABIN, UPPs, Copa do Mundo, lei “antiterrorismo” e por
aí vamos). Os reformistas se opuseram a tais medidas, mas não falaram em golpe.
Reservaram essa palavra para a derrocada de uma frente popular isolada e
socialmente desgastada, o que lhes parece muito mais dramático do que o
recrudescimento do aparato repressivo sob a gestão petista. A ruína do governo
lhes tocou muito mais do que a violência de Estado que ele alimentou, e isso
diz muito sobre o perfil do nosso reformismo contemporâneo.
Pablo ótimo texto e concordo com quase tudo e com certeza de uma perspectiva Marxista a análise atinge diversas questões importantíssimas quanto a realidade da questão, especialmente da perspectiva da equivalência entre o governo Dilma e o governo Temer. Porém, acho que para o entendimento pleno da questão temos que botar de lado a realidade, pois essa própria democracia liberal se funda na negação dessa realidade que você tão bem destacou. Para mim qualquer denominação de golpe ou revolução sempre será uma questão de perspectiva e essa questão , no sentido de denominar golpe ou não, tem de ser analisada da perspectiva dessa própria democracia liberal. Não como forma de revelar a realidade, mas de explicar uma quebra no funcionamento regular dessa aparência, de explicar porque apesar de serem iguais na prática eles serem percebidos como diferentes por reformistas e conservadores. O que você acha dessa questão ? Da perspectiva dessa própria ordem, que se sustenta na negação da realidade, houve golpe ? PT e PMDB continuam iguais nessa perspectiva ?
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