terça-feira, 4 de outubro de 2016

A medida deles e a nossa

É possível declarar a falência ou a morte de uma organização revolucionária a partir de uma baixa quantidade de votos nas eleições? Essa é a medida justa para se mensurar o seu estado de saúde, a sua força vital? Os reformistas tendem a se apressar e expedir o atestado de óbito de seus antagonistas em face de um desempenho que, em sua óptica, significa imediatamente uma bancarrota política. No entanto, sequer desconfiam que não podem julgar os revolucionários conforme os parâmetros, os objetivos e a estratégia que adotam para si. E por não desconfiarem, nos aborrecem com um conjunto de análises rasas que mais projetam a indigência de seu próprio horizonte político do que explicam efetivamente a complexidade de um fenômeno eleitoral no tocante às diferenças entre as organizações participantes.

Como é sabido, os reformistas e os revolucionários participam das eleições por motivos muito distintos. Os primeiros pretendem construir um polo amplo e indiferenciado de toda a esquerda (das organizações desse campo), ou de uma parte muito ampla, para obter vitórias nas lutas sociais e nas eleições, de maneira a "acumular forças" em favor de um campo de esquerda. Já os segundos participam dos pleitos fundamentalmente para divulgar seu programa de ruptura com o capital e para ganhar trabalhadores para o seu projeto político, tendo como norte a construção de uma direção revolucionária e a imprescindível superação dos obstáculos reformistas. Dessa diferença de objetivos, e também das concepções de mundo por trás delas, decorrem todas as diferenças que possam existir nas avaliações sobre um determinado processo eleitoral.

Os reformistas, conforme já discutimos em outra ocasião, possuem tendências fortemente campistas, e por isso secundarizam a questão de classe não apenas no seu alinhamento político, mas também no seu método de análise das eleições. Para eles, a contagem dos votos é um dado de tamanha importância que se sobrepõe completamente aos elementos de classe da situação política. Ao se apoiarem nesse tipo de raciocínio, deixam-se levar por uma lógica essencialmente formal e abstrata que os aproxima, sem exagero, do liberalismo burguês - o que não é uma surpresa, dado que o reformismo nada mais é do que uma refração ou uma adaptação com diversas mediações da ideologia burguesa em seu estado puro (o liberalismo).

O liberalismo trabalha com a figura do indivíduo abstrato, despido de determinações, produzindo a forma ideológica do "homem" que, na sociedade da produção generalizada de mercadorias, retrata a compleição do trabalho abstrato, condensando em si o aspecto social da lei do valor. É com base nessa abstração mercantil real da sociedade burguesa que ela produz a abstração do "homem" no plano social e do cidadão no plano político. O cidadão nada mais é do que um portador abstrato de direitos e deveres, a faceta política do sujeito de direito capitalista, e que, como tal, obscurece os elementos concretos, a começar pelo pertencimento de classe. É por isso que, na perspectiva liberal da cidadania, os indivíduos são cidadãos antes de qualquer coisa, e não burgueses ou proletários.

Nas eleições da democracia liberal, as classes são volatilizadas em favor da cidadania. O voto afere a participação individual das pessoas como cidadãs e descaracteriza juridicamente a sua origem de classe. Uma população cindida entre capitalistas, pequeno-burgueses e trabalhadores unifica-se formalmente, na esfera jurídica, enquanto eleitorado, enquanto corpo de cidadãos exercendo a soberania popular.

E o que os reformistas têm que ver com isso? Ora, eles consideram um processo eleitoral apenas do ponto de vista formal, tal como ocorre originalmente sob as lentes do liberalismo. Eles medem o desempenho eleitoral de um partido apenas pela quantidade de votos depositados nas urnas, o que significa que contabilizam apenas o número de cidadãos que aprovam uma determinada plataforma política nas eleições ou que exercem um determinado cálculo pragmático. Se essas pessoas são proletárias ou pequeno-burguesas, pertencentes às camadas mais cômodas ou mais exploradas do proletariado, brancas ou negras, moradoras de bairros de "classe média" ou das periferias, isso não importa. Só o que conta, nesse raciocínio, é o número de votos como dado suficiente em si mesmo.

Evidentemente, esse é um pensamento que se detém na abstração da cidadania, que não ultrapassa o momento jurídico da aparência das coisas. Em sentido oposto, os revolucionários devem sair desse momento abstrato e se moverem em direção à totalidade concreta, à síntese das determinações. Trata-se do bom e velho método dialético tão odiado pelos Bernsteins da história e tão falseado com truques de prestidigitação pelo oportunismo contemporâneo. Pois bem, se nos guiarmos por um pensamento dialético - e dialético nos termos de Marx, por certo, - veremos que é necessário ultrapassar a casca do aparente e atingir o essente. É preciso, pois, romper com a abstração da cidadania e verificar, concretamente, a origem de classe da votação dos candidatos, por maior ou menor que ela seja.

Não se trata de desprezar inteiramente o elemento quantitativo, o qual, por razões dialéticas, traz implicações qualitativas. No entanto, pode-se dizer que a quantidade está para a qualidade como a forma está para o conteúdo e como o abstrato está para o concreto. E assim como partimos do abstrato para chegar ao concreto (o qual poderá se tornar novamente um ponto abstrato sob uma nova perspectiva), também partimos da forma para o conteúdo e da quantidade para a qualidade. Quem se detém no nível abstrato e quantitativo não faz dialética, e por isso não procede como marxista. Daí a necessidade imperiosa de se buscar a substância de classe oculta na categoria etérea do eleitorado.

Façamos um cotejo entre o método formal dos reformistas e o método dialético-marxista dos revolucionários. Os reformistas dizem aos revolucionários algo como: "vocês obtêm resultados eleitorais inexpressivos em comparação com os nossos. Isso quer dizer que vocês são insignificantes e que nós somos o futuro da esquerda". O centro dessa argumentação é a quantidade de votos, qualquer que seja a sua procedência. Saindo da forma para o conteúdo, da abstração da cidadania para a concretude de classe, o revolucionário há de responder com muita serenidade: "é verdade, os votos de vocês são muito mais numerosos. Mas nós estamos mais preocupados com o perfil social dos nossos eleitores e em como iremos trazê-los para dentro de nossa organização. Pois como nosso objetivo nas eleições é dialogar com a classe trabalhadora e seus setores estratégicos (e não com a massa indiferenciada do "eleitorado"), o critério quantitativo adquire uma significação menor para nós, ainda que não desprezível".

É claro que os reformistas não hão de levar a sério esse tipo de consideração. Afinal, o horizonte do seu pensamento é a lógica formal da cidadania, na qual os eleitores não se distinguem entre si, na qual o voto do trabalhador negro da periferia equivale ao voto dos estratos médios do proletariado e da pequena-burguesia. E para fins eleitorais, inclusive, essa equivalência é o que conta. Mas como os revolucionários não se hierarquizam pelos resultados eleitorais, priorizando antes a sua construção nas bases do proletariado e da classe operária, pode-se afirmar que uma campanha que produziu, ao final, uma baixa quantidade de votos, não necessariamente será fracassada. Porque se essa baixa quantidade tiver como contrapeso um processo efetivo de captações ou um aumento importante da influência política do partido revolucionário sobre as bases do proletariado, gerando novas figuras públicas ou fortalecendo as já existentes, amadurecendo a experiência dos quadros e envolvendo os militantes mais jovens, então se tem aí um processo essencialmente positivo na sua dinâmica.

Sei que nossos reformistas não se contentaram com tais ponderações. Em sua hostilidade imanente ao método dialético, eles só se interessam pela fotografia isolada de um certo resultado, e não pela processualidade do filme. A construção do partido revolucionário, ou de qualquer partido (já que eles apagam as fronteiras políticas entre as organizações em nome da "unidade da esquerda"), é algo menor, segundo seu juízo político. "Queremos saber quantos votos caíram na urna e quantos parlamentares e governantes foram eleitos!", eis a sua exigência final. Eis aí também a sua mediocridade, o seu oportunismo barato e a miséria de sua concepção de mundo.

De acordo com os reformistas, quem não elege candidatos é insignificante. Com isso eles demonstram que tomam as eleições como o critério fundamental da política, e que tomam os mandatos parlamentares como um fim em si mesmo. Isso vale para todos os reformistas, tanto os autodeclarados como os inconscientes (pois se o reformismo é uma ideologia, ele é um fenômeno muito mais inconsciente do que consciente). Se um partido possui um tribuno popular num bairro de trabalhadores, por exemplo, isso de nada servirá se esse tribuno não estiver sob a investidura de um mandato parlamentar, quer dizer, se sua condição de figura pública não for chancelada pelo supostamente democrático sistema eleitoral. Assim, se os revolucionários possuem figuras destacadas e lideranças nos bairros pobres, nas ocupações, nos sindicatos, isso não os torna dignos e respeitáveis, pois a dignidade e respeitabilidade parecem emanar somente dos mandatos parlamentares. Tal é a estreiteza de sua concepção de mundo e de política. Tal é o grau da sua deferência perante as formas ideológicas da cidadania, do sufrágio e da soberania popular, essas categorias tão importantes na estruturação da democracia liberal.

O que dizer a esses senhores? Os revolucionários devem ser categóricos ao lhes advertir que as suas noções de política são demasiadamente estreitas. São de um nível teórico muito baixo, rastejante mesmo, sobretudo para os que se pretendem marxistas. Não só porque tais noções se afastam dos rudimentos da crítica marxista à democracia liberal, e não só porque ignoram todo o histórico de degeneração oportunista da II Internacional (alguém se lembra no que resultou a adaptação parlamentar do SPD alemão em sua ânsia de eleger parlamentares a qualquer custo?), mas também porque ignoram que uma das tarefas mais elementares dos revolucionários é desmascarar os reformistas - o que, por si só, já aponta para a excepcionalidade das frentes eleitorais com eles, mesmo que isso implique possibilidades de eleger candidatos.

Escreveremos, oportunamente, sobre a necessidade de desmascarar os reformistas e de se diferenciar deles a todo custo, ainda que isto ofenda o dogma sagrado da "unidade da esquerda". Por ora, o que podemos dizer aos agentes conscientes ou inconscientes do reformismo (sua consciência ou não é indiferente para efeitos práticos) é o seguinte: "façam todas os rebaixamentos programáticos e alianças eleitorais espúrias com partidos burgueses e pequeno-burgueses que julgarem necessárias. Fiquem bastante à vontade para seguir seu rumo, e elejam, assim, tantos candidatos quanto puderem. Apenas não contem conosco nessa empreitada".

Diante de tais palavras, os reformistas - que estão cada vez mais previsíveis e repetitivos - hão de dirigir aos revolucionários a sua fórmula trinitária: "Autoproclamatórios! Isolacionistas! Sectários!".  Ao que cabe responder: "nós nos isolaremos de vocês, mas não chorem por nós, até porque não temos lágrimas para vocês. Nos localizaremos nos setores aos quais vocês dão pouca importância, e onde a sua ausência não é sentida. Lutando contra nossas dificuldades internas, sem ilusões, encontraremos nosso espaço e preencheremos nossas fileiras com  o material humano que mais nos interessa, e tudo isso sem fazer comércio com os nossos princípios".

Deixemos que os reformistas riam à vontade com o atestado de óbito que forjaram para os revolucionários. Deixemos que trilhem como bem lhes aprouver o malfadado caminho da falecida II Internacional. Os revolucionários, cuja morte foi declarada por antecipação, gozam de boa saúde, ainda que não segundo os parâmetros eleitoreiros e oportunistas com os quais se pretende enquadrá-los.

Por favor, senhores, não nos ofereçam as suas próprias medidas. Elas podem lhes cair muito bem, mas francamente não nos servem. Obrigado.

3 comentários:

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  2. Bastante elucidativo no que tange ao conceito de cidadania propalado pelo reformismo, inclusive. Partindo deste pressuposto não é difícil perceber o quanto alguns demorarão para compreender a necessidade da revolução, pois acreditam que a democracia burguesa lhes confira uma identidade. A luta é ainda maior do que se poderia supor, entretanto, a revolução se mostra cada dia mais próxima, rumando ao inevitável. Lutemos

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