quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Nossa classe média sanguinária

Em 1964, houve o golpe. A classe média aplaudiu. Mais do que isso: antecipou as boas-vindas ao regime militar com suas marchas.

A partir de 1968, o movimento estudantil brasileiro se pôs em ação. Ao longo dos anos 1970, a classe média assistiu ao encarceramento e ao desaparecimento de alguns de seus filhos universitários. Este fato, somado ao declínio do crescimento econômico do país (que se materializava em consumo para esta camada social, e não em distribuição de renda), provocou uma cisão na principal base de sustentação política do regime. Com a recuperação do movimento operário nos anos 1980, a queda da ditadura era apenas uma questão de tempo.

Depois do último suspiro da ditadura, a classe média converteu-se em bloco ao credo democrático, salvo algumas pessoas mais renitentes e saudosistas. Juristas, jornalistas e figuras políticas de destaque celebraram a ruína do regime que louvaram durante anos, como se ansiassem pela redemocratização por décadas em silêncio forçado. Nada mais patético. 

Não que isto tenha apagado o ranço de uma classe média enamorada pela ideia de um Estado policialesco. E que não haja dúvidas: nossa classe média não anseia apenas por ordem. Para além de querer preservar a "ordem" (uma entidade mística, que aceita quase qualquer conteúdo), o que se espera é que quem atente contra ela receba a dose de sofrimento a que faz jus. Veja-se: não se trata da busca por uma violência dissuasiva, atrelada a um objetivo supostamente racional. A violência buscada é essencialmente expiatória e vingativa. A dor do ato repressivo não vem para "educar" condutas (supondo-se que a brutalidade do Estado possa servir para isto), mas sim para promover uma purgação autojustificada, que se desdobra num sádico deleite para quem clama por ela.

Este padrão é observável em todas as instâncias em que a força bruta estatal se faz presente. Que pensar da concepção de nossa classe média sobre o sistema carcerário brasileiro? O que a mais limitada das ONGs chamaria de uma calamidade social, nossos pequeno-burgueses qualificariam como mordomia. Eles lastimam as condições de vida dos presos, não por qualquer sentimento humanitário, mas precisamente por entendê-las como insuficientemente vis e precárias.

O mesmo raciocínio vale para a violência policial, com a diferença de que existe aí um elemento importante. A Polícia Militar é uma das reminiscências da ditadura militar. O sistema carcerário atual também é herdeiro do período, vale dizer, mas a PM demonstra mais cabalmente suas origens. Nossa Polícia mata mais que a dos EUA, o que por si só já é um enorme feito. E para além das estatísticas, cumpre analisar o modo de abordagem. O policial militar normalmente aborda os cidadãos com palavras agressivas e com a arma em punho (se o leitor vive em alguma bolha de conforto e alto consumo da cidade, provavelmente não saberá do que falo), comportando-se como um soldado de alguma força estrangeira de ocupação. Além disso, nossa PM detém um conhecimento científico sobre a anotomia humana de dar inveja. Sabe bem como instigar as dores mais lancinantes no corpo humano sem deixar vestígios.

No caso da Tropa de Choque (que manda lembranças ao franciscano médio), isto é ainda pior. A Tropa de Choque é uma escola de violência em que o agente da repressão é constituído enquanto tal. Os treinamentos desta instituição servem para despir os soldados de qualquer sentimento que possa afastá-lo de seu dever. Cada soldado deve estar pronto para agredir, torturar e matar com naturalidade. Aquela foto que circula na internet de um policial disparando um spray de pimenta contra o rosto de uma criança negra retrata bem esta lógica de "dessensibilização".
O objetivo desta preparação é separar o policial de sua comunidade e, acima de tudo, de sua classe. A história das revoluções é a história da rebelião dos estratos inferiores do aparato policial e militar, e esta rebelião se deve a um processo de reconhecimento. Quando os soldados reconhecem nos reprimidos seus irmãos de classe subalterna, não há general que possa manter a disciplina da tropa. Os levantes no mundo árabe indicam que a insistência deste sentimento de solidariedade de classe (ou mesmo de um mínimo de humanitarismo, em algumas ocasiões) pode dilapidar as bases de um regime político, por mais tirânico que ele seja. Muitos pilotos da força aérea de Kadafi, mesmo de dentro de suas assépticas maquinas de matar, simplesmente não puderam se render à insanidade da tarefa que lhes fora passada, qual seja, bombardear a população.

Para se ter um corpo repressor digno deste nome, é preciso afastar qualquer ímpeto humano de misericódia em seus agentes. É preciso ser capaz de tudo. É preciso superar em ferocidade os cães da policia e até mesmo os "elementos subversivos" que se combate. Eis aí a filosofia que orienta esta instituição tão amada pela classe média. E quanto mais desumana ela é (e portanto, mais eficaz nos seus propósitos), maior é o amor. O que nossos pequeno-burgueses de São Paulo não dariam por um Bope paulista? Decerto que se lamentam pela "brandura" dos métodos de nossa polícia. E decerto também que torceram ardorosamente para que os ocupantes da USP fossem agredidos, trancafiados e tratados sem nenhuma daquelas perfumarias chamadas de direitos humanos.

Um detalhe importante: se a classe média idolatra a ferocidade inerente às forças policiais, não há dúvidas de que dela partilha, e sem a necessidade de um treinamento militar. Como poderia operar-se tamanha bestificação? Pelo discurso da grande imprensa? Se admitirmos que a questão se resume a este ponto, então só poderíamos estar diante de um caso singular de estupidez coletiva, ou de uma lavagem cerebral massiva. Receio que a realidade seja mais complexa do que isto. Os aparelhos ideológicos, com efeito, são muito poderosos. Todavia, as condições em que podem ser mais ou menos bem-sucedidos dependem da objetividade material da sociedade.

A classe média é uma espécie de refugo da luta de classes. Não se encaixa adequadamente nem no campo da burguesia e nem no campo da classe trabalhadora. Trata-se de uma massa amorfa que engloba a maior parte dos funcionários públicos, profissionais liberais e pequenos proprietários. Por ser uma classe "residual", sua compleição é demasiado heterogênea. Além disso, sua identidade é estabelecida, prioritariamente, pelo nível de vida e de consumo, e não pela posição que ocupa na produção capitalista.

Esta composição social é fonte de um notável conservadorismo. A classe média representa, ao mesmo tempo, um setor mais "confortável" da classe trabalhadora e um setor mais frágil e inseguro da burguesia. Assim, diferentemente do que ocorre com o proletariado, a classe média é capaz de visualizar a possibilidade de ascensão social. Mesmo que seja difícil que um pequeno-burguês seja promovido a burguês, fato é que não é nada incomum que indivíduos de "classe média baixa" atinjam, um dia, o posto de "classe média alta". E diferentemente do que ocorre com a burguesia, a classe média é capaz de visualizar a possibilidade de regressão social. Aliás, a dinâmica monopolista do capitalismo conspira permanentemente para este resultado. Daí uma situação de risco que leva às maiores exasperações em momentos de possível guinada nos rumos da sociedade. O medo de Regina Duarte, hoje comprovadamente desfundamentado, não nos deixa dúvidas.

A ascensão social é o sonho da classe média, é o fator que a põe em movimento. O caminho é o consumo. A aquisição da casa própria, do carro e de mil e uma bugingangas da atualidade é um itinerário necessário para seus membros. Enquanto os trabalhadores comuns buscam no trabalho, via de regra, a garantia de oportunidades melhores para os filhos e netos (ou o pão dos próximos dias, no caso das camadas mais exploradas e precarizadas), os pequeno-burgueses estão sempre ambicionando novas conquistas para sua própria geração, cabendo às próximas nada mais do que dar continuidade ao movimento. Depois da casa própria, vem a casa na praia. Em seguida, o segundo carro da família, ou uma troca periódica de veículos. E por aí vamos.

Uma vez que a classe média é movida por um padrão de consumo que se pretende crescente (ascensão social), daí se tem que seu humor político varia conforme o desempenho da economia do país. Surtos de crescimento implicam políticas generosas de crédito para o consumidor, o que significa novos celulares, novas viagens etc. E se o dólar fizer o favor de se desvalorizar, então nossa classe média poderá conhecer o mundo mágico da Disney, o glamour da Big Apple e a cafonice de Las Vegas. As saudades do período FHC não são nada casuais.

Atualmente, o país cresce pouco. O crédito para o consumidor continua disponível, mas os juros são de arrepiar. Não que esta situação leve a classe média a se opor ao rentismo financeiro. Longe disto! A culpa de todas as mazelas, em sua limitada imaginação, é do Fisco-Leviatã. Nossos pequeno-burgueses simplesmente não percebem que seus problemas se devem à espoliação do orçamento público pelas camadas rentistas e ao arrocho salarial persistente que vige no país. Não percebem que a deficiência dos serviços públicos prejudica-lhes quase tanto como aos trabalhadores, e que os capitalistas são, para eles, uma imagem no espelho que, por mais que procurem, jamais encontram. A burguesia deste país sequer suspeita do que vem a ser, por exemplo, a realidade do transporte público.

Sufocada nas suas dívidas, a classe média muda de semblante. Começa a se enfurecer. E no ápice dos seus instantes de ódio, precisa encontrar um Judas para malhar. O boneco malhado muda conforme a conjuntura, sendo que, agora, os estudantes da USP são a bola da vez. No brilhante e nada simplificador raciocínio pequeno-burguês, o Brasil desperdiça suas potencialidades com alunos que ocupam prédios públicos em nome do direito de fumar maconha. A este patamar chega o farisaísmo para sintetizar o que se passa.

Em cada espasmo de ódio, encontramos a aflição de um estrato que caminha em direção à burguesia da mesma forma que um homem caminha em direção ao sol postado no horizonte. O mesmo estrato que se encontra sob constante ameaça de proletarização. É neste terreno de insegurança que a verborragia midiática encontra adeptos fanáticos, prontos para entregar seu discernimento em troca de garantia da inércia social.

A classe média é, ao fim e ao cabo, uma criança assustada que se agarra ao primeiro suporte que encontra. Numa sociedade marcada por um abismo entre as classes sociais, por uma segregação radical que, mediante uma mínima tensão em sentido contrário, pode desencadear conflitos intensos, virando tudo do avesso de repente. O Estado policialesco aparece aí como um consolo e um anteparo. Seu poder de conservação atua como bálsamo salvador. E depois do alívio, vem o deleite. O filisteu experimenta um prazer inenarrável, num mórbido erotismo, ao pronunciar expressões como "descer o porrete". O gozo que o acomete é tamanho que sequer lhe é possível esboçar um ar de civilidade para fingir que vê o ato repressivo como uma espécie de "mal necessário".

Ainda assim, nossa classe média é cristã. O pecado do vício e da desobediência exige punição e vingança. Seus valores cristãos não lhe parecem nada incoerentes com o discurso do "descer o porrete". Lamentavelmente, um observador incauto como eu poderia desconfiar desta aproximação. Eu poderia me perguntar sobre o lugar que o amor, o perdão e a tolerância ocupam nesta singular concepção. Mas provavelmente não há motivos para inquietação. Afinal, Jesus disse que quem ferir pela espada tombará pela espada. Felizmente, nossa Tropa de Choque utiliza armas que não se enquadram na reprovação moral anunciada pelo pacífico nazareno.

Não, por favor... perdoem-me pela ironia. Não duvido que os expoentes da classe média se comportem como bons cristãos. Pois se eles desejam o pior para seus "semelhantes", é somente para que estes pecadores, no paroxismo do sofrimento merecido, encontrem a redenção. O porrete, em última instância, vem para conduzir a Cristo, segundo nossos piedosamente mórbidos guardiões da moral.

Evidentemente, nem todos os que se colocam favoráveis à invasão da polícia no campus apresentam traços em que a patologia se revela com tanta nitidez. Alguns poderão até dizer algo como: "Sou a favor da PM, mas espero que ela não extrapole". Ora, esta ingenuidade chega a ser pueril. A Polícia Militar, em verdade, é feita para "extrapolar", e seus expedientes de repressão não são mais do que o exercício da musculatura do Estado enquanto violência concentrada. As comunidades pobres que o digam.

Já me alonguei bastante. Gostaria de encerrar fazendo menção a um problema teórico. Alguns pensadores brasileiros lançaram-se à tarefa de refletir sobre o que havia restado da ditadura no Brasil. Indicaram, nesta empreitada, diversos dispositivos institucionais, e mesmo legais. Cumpre acrescentar, no entanto, que a principal reminiscência do regime militar, hodiernamente, é a sua base social. Se quisermos saber como uma sociedade pode se ver entregue a forças despóticas, ou seja, como algo de tão terrível pode acontecer sem que alguma resistência efetiva consiga se impor, basta conferirmos o que se passa em redes sociais como o facebook. Há todo um número expressivo de pessoas que estão devidamente preparadas para servir de suporte político para os mais inimagináveis retrocessos neste arremedo de democracia em que vivemos. A maioria delas, certamente, jura de pé junto que se insurgiria contra o golpe em 1964...

Quem são essas pessoas? Como podemos chamar esses pequeno-burgueses enraivecidos, cuja referência moral é o Capitão Nascimento? Caso perguntássemos a um deles por seu nome, talvez ele parafraseasse a bíblia, dizendo: "Meu nome é legião, porque somos muitos". O bastante para nos preocuparmos.

sábado, 5 de novembro de 2011

A Segunda Grande Revelação do Relativismo

Segunda Grande Revelação: não existe luta do bem contra o mal

O conservador disfarçado de relativista, ao envolver-sr em discussões com a esquerda, utiliza um aparelho retórico muito particular. Poderíamos chamá-lo de "maniqueímetro". Toda vez que um militante de esquerda defende seu ponto de vista com confiança e comprometimento, expondo as consequências de cada alinhamento na política (ou seja, as implicações da tomada de partido num dado conflito), o mencionado dispositivo começa a apitar, fazendo um verdadeiro escarcéu.

Se digo, ilustrativamente, que a sociedade está dividida em exploradores e explorados, o maniqueímetro imediatamente se colocará em funcionamento. Falar em exploradores e explorados, para o conservador-relativista, significa falar numa luta entre o bem e o mal. Então, deleitando-se com a própria sagacidade, este direitista apontará a impossibilidade desta dicotomia na política, pois bem e mal são conceitos relativos.

O grande artifício conservador está em deslocar uma questão política (no nosso exemplo, o conflito de classes) para o âmbito moral, este domínio fluido onde quase tudo é possível. Nada mais conveniente, pois o alinhamento com os interesses materiais da sociedade, objetivamente operantes, acaba sendo coberto por um véu ideológico. O antagonismo entre interesses em choque é apresentado como mera divergência de opiniões, como simples diferença de perspectivas. E se tudo não passa de uma questão de ponto de vista, então entramos no confortável reino do "tanto faz".

Para desmentir esta insustentável concepção, basta que nos reportemos à base material de todo e qualquer debate político. Independentemente do que se entenda por bem ou mal, todos os dias um enorme contingente humano produz a riqueza social por seu trabalho, e todos os dias uma pequena camada da população se apropria, sem trabalhar, da maior parte desta riqueza, ainda que por diferentes formas (lucro, renda, dividendos, juros etc.). O nome deste fenômeno é exploração, ou, se preferirmos usar um sinônimo mais ameno, extração do produto social excedente. Se isto é bom ou mau, justo ou injusto, pouco importa para a realidade.

A esta altura, algum desventurado leitor relativista haverá de nos constranger com seu maniqueímetro, pois a simples referência a um evento tão maniqueísta como a exploração seria uma prática inaceitável de minha parte. Estou disposto a reconsiderar, mas com uma condição: que este interlocutor me demonstre como lucro, renda, dividendos e juros representam a contrapartida de uma atividade verdadeiramente produtiva desempenhada pelas personificações do capital. Caso não consiga fazê-lo, só lhe restará tentar provar que as citadas formas de rendimento não repousam sobre o mundo do trabalho, sendo antes resultado da materialização do éter...

Tem-se, pois, que o primeiro passo para uma discussão política séria é reconhecer a objetividade dos fatos. A exploração, assim como o machismo, o racismo e a homofobia, são dados da realidade. Negar isto é supor um mundo imaginário, sem nenhum tipo de violência real. É como se todos os problemas da humanidade decorressem de falsas ideias sobre sua situação, e não sobre a sua situação em si. Há um número aterrador de pessoas que acreditam que o mundo seria melhor se seus habitantes pensassem que ele é melhor. Lutar contra a espoliação e a tirania que assolam o mundo seria apenas "inventar" a espoliação e a tirania!

Mas por que nossos conservadores se portam assim? Por qual motivo insistem em tratar antagonismos políticos como uma questão de moral e em se referir a noções como exploração e opressão como se fossem paranóicas ou caprichosamente divisionistas? Simples: negar o conflito é a alma do negócio. Mais do que distorcer a realidade, é preciso que a distorção ideológica seja capaz de sugerir que uma sociedade como a nossa é composta por interesses convergentes, e que as oposições que se verificam são parciais e marginais. E para deslegitimar os discursos que reivindicam o antagonismo, nada como "infantilizá-los", ou seja, tratá-los como se fossem lastreados numa concepção simplista e transcendente, como se não espelhassem nenhum conflito material.

A negação do conflito, em verdade, é a negação da própria política, que nasce precisamente da movimentação de sujeitos cujos interesses estão objetivamente contrapostos (por exemplo: a extração do trabalho excedente funda o antagonismo entre as classes, independentemente da vontade individual de seus membros). A negação da política, por sua vez, é a receita da inércia dos dominados, é o caminho da prostração, da derrota sem combate. A grande ofensiva do capital contra o trabalho nas últimas décadas, conhecida como neoliberalismo, foi baseada na ideia, ainda que não proclamada deste modo, do fim da política. O capitalismo, depois da derrocada do bloco soviético, foi promovido ideologicamente. De modelo de sociedade passível de discussão, foi transformado em força da natureza. E a natureza, como se sabe, não pode ser "superada", mas apenas "administrada" dentro de limites.
Tanto é assim que, hodiernamente, o "uso político" da taxa de juros (este instrumento de política econômica tão débil quanto fetichizado) é motivo de escândalo. Um governo não deve definir objetivos para um elemento da natureza, como é o caso da taxa de juros. Resta-lhe apenas "compreender" qual é a vontade do mercado, isto é, extrair de suas manifestações um sentido a se seguir. "Quo vades, domine"!.  Que terrível destino aguarda um país que não conta com profissionais suficientemente qualificados para realizar a intelecção dos desígnios do Des-mercado! Prioridades políticas? Blasfêmia! Tudo não passe de uma questão de técnica, tudo se resume a qualidades e deficiências inocentemente técnicas e administrativas.

Que pensar do enxuto linguajar "político" dos dias de hoje? Contra a delirante visão marxista da luta de classes, o que temos é uma "sociedade civil" cada vez mais "heterogênea" e "complexa". Há vários "atores" em constante interação, perfazendo um ambiente "pluralista". Nosso desafio é fazer com que estes atores se percebam como "parceiros sociais", promovendo o espetáculo da concertação, e tudo sem prejuízo das "identidades". Como? Pelo "diálogo", fonte da redenção eterna via "produção de consensos". Pronto! Já está pavimentado o caminho da "cidadania". E enquanto estas belas palavras, nada conflitivas, são repetidas ad nauseam no repertório dos partidos da ordem (quase coloco no singular), das ONGs (tanto das sérias quanto das mal-intencionadas) e do sindicalismo pelego, a vida segue: a mais-valia flui para os bolsos dos capitalistas, as mulheres são coisificadas pelo capital, os LGBTTs se vêem alijados de conquistas mínimas que marcaram a civilização burguesa etc. Aliás, todas as vitórias obtidas pelo movimento neoliberal foram formuladas nos termos que coloquei em destaque.

Contra este estado de coisas, impõe-se a refundação da política pela lógica do conflito, pelo embate entre os inconciliáveis. Que os dominados encarem de frente os dominantes, que venha a polarização. E quanto à luta do bem contra o mal? Depois que nossos conservadores assumirem os interesses que defendem e representam, teremos prazer em concordar com eles quanto à tese de que "bem" e "mal" são "relativos", já que a axiologia dos dominados não é a mesma que a dos dominantes.