quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Algumas palavras sobre a eleição de Donald Trump

Antes de decretarmos a irrupção do apocalipse nos EUA e no mundo, convém refletir um pouco sobre as determinações da democracia liberal e sobre a situação do sistema político estadunidense. Com efeito, não se pode compreender minimamente um processo eleitoral sem se levar em conta as particularidades do regime político e também do sistema político de um país. Tentaremos proceder dessa forma.

Comecemos pelo sistema político, ou seja, pela situação dos partidos e dos candidatos. Donald Trump, candidato vitorioso, é um "outsider", uma figura que se coloca como um estranho num ambiente historicamente dominado por famílias de políticos profissionais (como os Clinton e os Bush no período recente). Também é um estranho no interior do próprio partido republicano, o qual contém ainda muita resistência ao excêntrico bilionário. Tanto que ele financiou sua campanha com recursos próprios, uma vez que não foi possível unificar minimamente o partido em torno de sua candidatura. A vitória de Trump, assim, indica sinais de esgotamento de um sistema político que por décadas logrou administrar as tensões e contradições políticas nos marcos da bipolaridade entre democratas e republicanos. Vale lembrar a este respeito, inclusive, que Bernie Sanders, outro "outsider" em relação ao jogo político tradicional, representou uma ameaça real à candidatura de Clinton nas prévias do partido democrata.

O triunfo de Donald Trump, curiosamente, implica uma desmoralização tanto para os democratas quanto para os republicanos. Para os democratas, e particularmente para os Clinton, a derrota para um candidato com fortes traços caricaturais é um sinal de que a rejeição de sua candidata foi tamanha que de algum modo superou a rejeição, também bastante grande, de seu adversário. Trata-se de perder para um candidato que não foi levado a sério sequer por seu próprio partido. E para os republicanos, o vexame consiste em "perder o controle", por assim dizer, de suas próprias candidaturas, ou seja, de não conseguir emplacar um quadro com um perfil mais sóbrio e que tivesse mais representatividade nas fileiras partidárias. Aliás, a carência de quadros por parte dos republicanos é sintomática da decadência política dessa organização.

Isso significa, portanto, que Trump estará livre para aplicar todo o reacionarismo de seu discurso? Parece-nos que não. O motivo: a complexidade interna do regime democrático.

Expliquemo-nos. Longe de acreditar que uma democracia liberal não possa por em práticas as ideias apresentadas por Trump ao longo de sua campanha (os EUA já possuem precedentes semelhantes e até piores), entendemos, no entanto, que o governo do candidato eleito será um governo fraco. Isso mesmo: apesar da vitória eleitoral, Donald Trump precisará vencer a resistência no seu próprio partido e estabelecer um diálogo mínimo com a oposição democrata para viabilizar o seu mandato presidencial. Tais condições são fruto de necessidades objetivas postas pelo regime democrático liberal, e que decorrem tanto do papel dos partidos nesse tipo de regime quanto da prevalência do parlamento (no caso, o Congresso) em última instância nas decisões estatais, mesmo na variante presidencialista.

Não admira, pois, o tom que Trump apresentou em seu discurso da vitória. Quem imaginava que o candidato eleito faria um discurso maligno em trajes da Ku Klux Klan enganou-se redondamente. A linha adotada foi altamente conciliatória, com direito aos clichês do tipo "vou governar para todos", "sou presidente de todos", "vamos reunificar o país" etc. E por que isso? Trump, evidentemente, não abriu mão do obscurantismo que lhe é próprio. No entanto, ele não é tolo. Sabe dosá-lo. Populista de direita, o republicano soube dialogar com o conservadorismo mais arraigado da "América profunda", soube cativar as camadas mais reacionárias da pequena-burguesia estadunidense (setor muito expressivo demograficamente) e mesmo de uma parte dos assalariados. Contudo, Trump não quer ser o herói da extrema direita. Ele quer governar, e para isso vai jogar o jogo do regime.

Comparemos com o caso brasileiro. Após uma vitória eleitoral apertadíssima contra Aécio Neves, o que fez Dilma Rousseff? Decretou uma guinada à esquerda e declarou guerra aos "coxinhas" da tal "onda conservadora"? A conduta da então presidenta foi justamente o contrário. Assim como Trump, ela conclamou a unidade da nação e se reivindicou governante de todos os brasileiros. Pois tanto ela como o recém-eleito presidente dos EUA almejam a pacificação social para governar, e não é outro o anseio geral da burguesia. Esta poderá, agora, dirigir-se ao bilionário da seguinte maneira: "Muito bem, você fez as suas palhaçadas para se eleger. Agora que foi eleito, porte-se seriamente, personifique o Estado e o regime, siga o protocolo... ou então haverá de se ver conosco".

Mas a democracia liberal possui, para a burguesia, uma virtude muito interessante, e que vai além da sua gentil permeabilidade aos interesses empresariais. Ela tende à estabilidade política por conta de seu próprio funcionamento. Isso ocorre não apenas porque as eleições acabam canalizando distorcidamente a insatisfação popular, mas também porque o mecanismo de freios e contrapesos da divisão de poderes faz com que as tendências mais extremas tendam a se moderar no jogo de negociações políticas. Nesse sentido, Trump não vai aplicar seu programa ideal pelo mesmo motivo que Bernie Sanders, caso fosse eleito, também não aplicaria plenamente sua plataforma (a qual, mesmo sem concessões, nem é tão avançada como imaginam os alegres reformistas). Há um pendor, por parte do regime, para o "centro", para as meias medidas, qualquer que seja a sua posição no espectro político, a menos que haja uma situação excepcional da luta de classes. E esse pendor existe, em condições de normalidade, porque a rivalidade entre os partidos (e também a rivalidade interna nos partidos) promove uma síntese de enfrentamentos e compromissos que impossibilitam o triunfo de uma plataforma pura, seja ela supostamente mais progressista ou mais reacionária.

É o caso de se indagar: há uma situação excepcional da luta de classes nos EUA? Sim, embora não se trate de uma onda fascista, como imaginam alguns. Há, por certo, uma maior polarização política. Sanders, que é menos que um reformista, mas que significa alguma coisa de diferente no jogo político tradicional, foi um indicador de que as bases da sociedade estadunidense estão movediças, de que há uma inquietação que se expressa num aguçamento das tensões do país, sobretudo do ponto de vista da questão racial.

O que pensar, então, dos votos em Trump, e que se mostraram majoritários? É um erro imaginar que todos os votos no candidato vencedor significam uma adesão ao seu discurso e ao seu programa. O mesmo vale para Hillary Clinton, que só teve uma votação expressiva por conta do rechaço ao oponente. Importa ressaltar que um sistema político bipolar como o dos EUA gera o mesmo tipo de efeito do segundo turno das eleições em países como o Brasil: o sufrágio torna-se uma medida do choque entre rejeições. Ou seja, vence quem acumula menos desgaste. A candidata democrata, com uma longa carreira política e com todo um histórico de medidas reacionárias (dela e de Bill Clinton, a quem está politicamente associada), seguramente teve mais condições de acumular mais desgaste do que Trump, o qual teve contra si "apenas" as suas declarações desastrosas e os escândalos relacionados à sua conduta pessoal num passado recente.

Diante desses fatos, cumpre entender melhor o significado da eleição de Donald Trump. O vencedor da eleição consagrou-se menos por aquilo que disse e mais por seu grande trunfo, sua condição de ser "alguém de fora" do sistema político. Um de seus motes era, justamente, o apelo ao não pertencimento à "classe política". Nas eleições municipais de São Paulo, vimos como João Dória beneficiou-se dessa perspectiva. A repulsa ao sistema político é um dado interessante, ainda que ela não encontre, ainda, um desaguadouro organizativo nos movimentos de trabalhadores nos EUA (cuja desarticulação é um capítulo à parte na história). Por óbvio, é preocupante que os escândalos ligados a Trump, principalmente nas questões ligadas às opressões, tenham tido um efeito limitado sobre a sua rejeição, ainda que, num primeiro momento, as comprovações de abuso sexual tenham afetado sua campanha de maneira mais contundente. Porém, o revés somente ocorreu após a acusações do FBI contra Hillary Clinton. Pode-se dizer, assim, que a candidata dos democratas foi derrotada mais por fragilidade sua do que por méritos do adversário. As massas não confiam na família Clinton, e não se pode lhes tirar a razão, dado o histórico de guerras, encarceramento massivo e ataques neoliberais a direitos sociais desses ilustres representantes do partido democrata. Com esse perfil, não se pode imaginar que a candidatura vencida faria melhor que a vencedora.

Felizmente, acreditamos que Trump não terá uma vida fácil na Casa Branca, embora seja indubitável que os amplos pontos de acordo entre democratas e republicanos garantam um mínimo de governabilidade ao novo presidente. O problema, para ele, será a aplicação dos pontos mais extremos de seu programa. Seria ele capaz de convencer a própria burguesia estadunidense a se desfazer imediatamente de todo um contingente de mão de obra barata imigrante? O discurso moderado no momento da vitória sugere que talvez esse tipo de proposta estapafúrdia fosse mais uma jogada publicitária para mobilizar um direitismo apático para a campanha eleitoral do que uma real intenção de levar essas ideias até as últimas consequências. De qualquer forma, caso os capitalistas dos Estados Unidos decidissem pela restrição brutal do mercado de trabalho nacional, quem iria se contrapor a eles? Hillary Clinton e seu partido?

Nesse sentido, devemos nos perguntar: a quem confiar a direção de um forte movimento de oposição e resistência ao novo e reacionário governo burguês? Aos democratas? De modo algum. A alternância cúmplice entre os partidos da ordem no governo sobre a qual se baseia o sistema político estadunidense não há de oferecer nada de promissor à classe trabalhadora dos Estados Unidos. Essas duas organizações estão umbilicalmente irmanadas na administração "responsável" do capitalismo e também do imperialismo. Urge, pois, a reconstrução do movimento dos trabalhadores do país e a construção de uma direção revolucionária. A verdadeira oposição a Donald Trump não está nas mãos dos Clinton e nem de Sanders. Ela só poderá existir de fato nas mãos do proletariado e da IV Internacional.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A medida deles e a nossa

É possível declarar a falência ou a morte de uma organização revolucionária a partir de uma baixa quantidade de votos nas eleições? Essa é a medida justa para se mensurar o seu estado de saúde, a sua força vital? Os reformistas tendem a se apressar e expedir o atestado de óbito de seus antagonistas em face de um desempenho que, em sua óptica, significa imediatamente uma bancarrota política. No entanto, sequer desconfiam que não podem julgar os revolucionários conforme os parâmetros, os objetivos e a estratégia que adotam para si. E por não desconfiarem, nos aborrecem com um conjunto de análises rasas que mais projetam a indigência de seu próprio horizonte político do que explicam efetivamente a complexidade de um fenômeno eleitoral no tocante às diferenças entre as organizações participantes.

Como é sabido, os reformistas e os revolucionários participam das eleições por motivos muito distintos. Os primeiros pretendem construir um polo amplo e indiferenciado de toda a esquerda (das organizações desse campo), ou de uma parte muito ampla, para obter vitórias nas lutas sociais e nas eleições, de maneira a "acumular forças" em favor de um campo de esquerda. Já os segundos participam dos pleitos fundamentalmente para divulgar seu programa de ruptura com o capital e para ganhar trabalhadores para o seu projeto político, tendo como norte a construção de uma direção revolucionária e a imprescindível superação dos obstáculos reformistas. Dessa diferença de objetivos, e também das concepções de mundo por trás delas, decorrem todas as diferenças que possam existir nas avaliações sobre um determinado processo eleitoral.

Os reformistas, conforme já discutimos em outra ocasião, possuem tendências fortemente campistas, e por isso secundarizam a questão de classe não apenas no seu alinhamento político, mas também no seu método de análise das eleições. Para eles, a contagem dos votos é um dado de tamanha importância que se sobrepõe completamente aos elementos de classe da situação política. Ao se apoiarem nesse tipo de raciocínio, deixam-se levar por uma lógica essencialmente formal e abstrata que os aproxima, sem exagero, do liberalismo burguês - o que não é uma surpresa, dado que o reformismo nada mais é do que uma refração ou uma adaptação com diversas mediações da ideologia burguesa em seu estado puro (o liberalismo).

O liberalismo trabalha com a figura do indivíduo abstrato, despido de determinações, produzindo a forma ideológica do "homem" que, na sociedade da produção generalizada de mercadorias, retrata a compleição do trabalho abstrato, condensando em si o aspecto social da lei do valor. É com base nessa abstração mercantil real da sociedade burguesa que ela produz a abstração do "homem" no plano social e do cidadão no plano político. O cidadão nada mais é do que um portador abstrato de direitos e deveres, a faceta política do sujeito de direito capitalista, e que, como tal, obscurece os elementos concretos, a começar pelo pertencimento de classe. É por isso que, na perspectiva liberal da cidadania, os indivíduos são cidadãos antes de qualquer coisa, e não burgueses ou proletários.

Nas eleições da democracia liberal, as classes são volatilizadas em favor da cidadania. O voto afere a participação individual das pessoas como cidadãs e descaracteriza juridicamente a sua origem de classe. Uma população cindida entre capitalistas, pequeno-burgueses e trabalhadores unifica-se formalmente, na esfera jurídica, enquanto eleitorado, enquanto corpo de cidadãos exercendo a soberania popular.

E o que os reformistas têm que ver com isso? Ora, eles consideram um processo eleitoral apenas do ponto de vista formal, tal como ocorre originalmente sob as lentes do liberalismo. Eles medem o desempenho eleitoral de um partido apenas pela quantidade de votos depositados nas urnas, o que significa que contabilizam apenas o número de cidadãos que aprovam uma determinada plataforma política nas eleições ou que exercem um determinado cálculo pragmático. Se essas pessoas são proletárias ou pequeno-burguesas, pertencentes às camadas mais cômodas ou mais exploradas do proletariado, brancas ou negras, moradoras de bairros de "classe média" ou das periferias, isso não importa. Só o que conta, nesse raciocínio, é o número de votos como dado suficiente em si mesmo.

Evidentemente, esse é um pensamento que se detém na abstração da cidadania, que não ultrapassa o momento jurídico da aparência das coisas. Em sentido oposto, os revolucionários devem sair desse momento abstrato e se moverem em direção à totalidade concreta, à síntese das determinações. Trata-se do bom e velho método dialético tão odiado pelos Bernsteins da história e tão falseado com truques de prestidigitação pelo oportunismo contemporâneo. Pois bem, se nos guiarmos por um pensamento dialético - e dialético nos termos de Marx, por certo, - veremos que é necessário ultrapassar a casca do aparente e atingir o essente. É preciso, pois, romper com a abstração da cidadania e verificar, concretamente, a origem de classe da votação dos candidatos, por maior ou menor que ela seja.

Não se trata de desprezar inteiramente o elemento quantitativo, o qual, por razões dialéticas, traz implicações qualitativas. No entanto, pode-se dizer que a quantidade está para a qualidade como a forma está para o conteúdo e como o abstrato está para o concreto. E assim como partimos do abstrato para chegar ao concreto (o qual poderá se tornar novamente um ponto abstrato sob uma nova perspectiva), também partimos da forma para o conteúdo e da quantidade para a qualidade. Quem se detém no nível abstrato e quantitativo não faz dialética, e por isso não procede como marxista. Daí a necessidade imperiosa de se buscar a substância de classe oculta na categoria etérea do eleitorado.

Façamos um cotejo entre o método formal dos reformistas e o método dialético-marxista dos revolucionários. Os reformistas dizem aos revolucionários algo como: "vocês obtêm resultados eleitorais inexpressivos em comparação com os nossos. Isso quer dizer que vocês são insignificantes e que nós somos o futuro da esquerda". O centro dessa argumentação é a quantidade de votos, qualquer que seja a sua procedência. Saindo da forma para o conteúdo, da abstração da cidadania para a concretude de classe, o revolucionário há de responder com muita serenidade: "é verdade, os votos de vocês são muito mais numerosos. Mas nós estamos mais preocupados com o perfil social dos nossos eleitores e em como iremos trazê-los para dentro de nossa organização. Pois como nosso objetivo nas eleições é dialogar com a classe trabalhadora e seus setores estratégicos (e não com a massa indiferenciada do "eleitorado"), o critério quantitativo adquire uma significação menor para nós, ainda que não desprezível".

É claro que os reformistas não hão de levar a sério esse tipo de consideração. Afinal, o horizonte do seu pensamento é a lógica formal da cidadania, na qual os eleitores não se distinguem entre si, na qual o voto do trabalhador negro da periferia equivale ao voto dos estratos médios do proletariado e da pequena-burguesia. E para fins eleitorais, inclusive, essa equivalência é o que conta. Mas como os revolucionários não se hierarquizam pelos resultados eleitorais, priorizando antes a sua construção nas bases do proletariado e da classe operária, pode-se afirmar que uma campanha que produziu, ao final, uma baixa quantidade de votos, não necessariamente será fracassada. Porque se essa baixa quantidade tiver como contrapeso um processo efetivo de captações ou um aumento importante da influência política do partido revolucionário sobre as bases do proletariado, gerando novas figuras públicas ou fortalecendo as já existentes, amadurecendo a experiência dos quadros e envolvendo os militantes mais jovens, então se tem aí um processo essencialmente positivo na sua dinâmica.

Sei que nossos reformistas não se contentaram com tais ponderações. Em sua hostilidade imanente ao método dialético, eles só se interessam pela fotografia isolada de um certo resultado, e não pela processualidade do filme. A construção do partido revolucionário, ou de qualquer partido (já que eles apagam as fronteiras políticas entre as organizações em nome da "unidade da esquerda"), é algo menor, segundo seu juízo político. "Queremos saber quantos votos caíram na urna e quantos parlamentares e governantes foram eleitos!", eis a sua exigência final. Eis aí também a sua mediocridade, o seu oportunismo barato e a miséria de sua concepção de mundo.

De acordo com os reformistas, quem não elege candidatos é insignificante. Com isso eles demonstram que tomam as eleições como o critério fundamental da política, e que tomam os mandatos parlamentares como um fim em si mesmo. Isso vale para todos os reformistas, tanto os autodeclarados como os inconscientes (pois se o reformismo é uma ideologia, ele é um fenômeno muito mais inconsciente do que consciente). Se um partido possui um tribuno popular num bairro de trabalhadores, por exemplo, isso de nada servirá se esse tribuno não estiver sob a investidura de um mandato parlamentar, quer dizer, se sua condição de figura pública não for chancelada pelo supostamente democrático sistema eleitoral. Assim, se os revolucionários possuem figuras destacadas e lideranças nos bairros pobres, nas ocupações, nos sindicatos, isso não os torna dignos e respeitáveis, pois a dignidade e respeitabilidade parecem emanar somente dos mandatos parlamentares. Tal é a estreiteza de sua concepção de mundo e de política. Tal é o grau da sua deferência perante as formas ideológicas da cidadania, do sufrágio e da soberania popular, essas categorias tão importantes na estruturação da democracia liberal.

O que dizer a esses senhores? Os revolucionários devem ser categóricos ao lhes advertir que as suas noções de política são demasiadamente estreitas. São de um nível teórico muito baixo, rastejante mesmo, sobretudo para os que se pretendem marxistas. Não só porque tais noções se afastam dos rudimentos da crítica marxista à democracia liberal, e não só porque ignoram todo o histórico de degeneração oportunista da II Internacional (alguém se lembra no que resultou a adaptação parlamentar do SPD alemão em sua ânsia de eleger parlamentares a qualquer custo?), mas também porque ignoram que uma das tarefas mais elementares dos revolucionários é desmascarar os reformistas - o que, por si só, já aponta para a excepcionalidade das frentes eleitorais com eles, mesmo que isso implique possibilidades de eleger candidatos.

Escreveremos, oportunamente, sobre a necessidade de desmascarar os reformistas e de se diferenciar deles a todo custo, ainda que isto ofenda o dogma sagrado da "unidade da esquerda". Por ora, o que podemos dizer aos agentes conscientes ou inconscientes do reformismo (sua consciência ou não é indiferente para efeitos práticos) é o seguinte: "façam todas os rebaixamentos programáticos e alianças eleitorais espúrias com partidos burgueses e pequeno-burgueses que julgarem necessárias. Fiquem bastante à vontade para seguir seu rumo, e elejam, assim, tantos candidatos quanto puderem. Apenas não contem conosco nessa empreitada".

Diante de tais palavras, os reformistas - que estão cada vez mais previsíveis e repetitivos - hão de dirigir aos revolucionários a sua fórmula trinitária: "Autoproclamatórios! Isolacionistas! Sectários!".  Ao que cabe responder: "nós nos isolaremos de vocês, mas não chorem por nós, até porque não temos lágrimas para vocês. Nos localizaremos nos setores aos quais vocês dão pouca importância, e onde a sua ausência não é sentida. Lutando contra nossas dificuldades internas, sem ilusões, encontraremos nosso espaço e preencheremos nossas fileiras com  o material humano que mais nos interessa, e tudo isso sem fazer comércio com os nossos princípios".

Deixemos que os reformistas riam à vontade com o atestado de óbito que forjaram para os revolucionários. Deixemos que trilhem como bem lhes aprouver o malfadado caminho da falecida II Internacional. Os revolucionários, cuja morte foi declarada por antecipação, gozam de boa saúde, ainda que não segundo os parâmetros eleitoreiros e oportunistas com os quais se pretende enquadrá-los.

Por favor, senhores, não nos ofereçam as suas próprias medidas. Elas podem lhes cair muito bem, mas francamente não nos servem. Obrigado.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O caso Lula e a mecânica do campismo

Nota preliminar: esse texto pressupõe uma interlocução com quem já está ciente de que Temer, o tucanato, Bolsonaro e companhia são inimigos da classe trabalhadora e dos grupos oprimidos, mas ainda alimenta certas esperanças no lulopetismo. É dizer: trata-se de um debate dentro da chamada "esquerda" (problematizaremos esse tema no texto). Favor não nos importunar com a velha cantilena chantagista sobre "fazer o jogo da direita".

Consumado o processo de impeachment do Brasil, o qual foi interpretado pela maioria das organizações que se postulam de esquerda como um "golpe parlamentar", vê-se agora um novo capítulo na história das capitulações dessas forças políticas, sobretudo por parte dos setores ditos socialistas e até mesmo trotskistas. Para esses setores, o episódio do indiciamento do ex-presidente Lula pelo Ministério Público Federal seria um prolongamento do tal golpe parlamentar, cabendo à classe trabalhadora a iminente tarefa de barrar tal iniciativa e de defender, com todas as suas forças, a liberdade de Lula. Afinal, propõe-nos esta linha de raciocínio, a prisão do ex-presidente seria não apenas um ataque contra ele e contra o PT, mas sim contra toda a "esquerda" e contra toda a classe trabalhadora.

Essa defesa exaltada de Lula, na esteira da caracterização de que teria havido um golpe no país, demonstra de maneira cabal que na chamada esquerda, e mesmo dentre os que reivindicam o ideal do socialismo, prevalece uma lógica política inteiramente campista. Nesse diapasão, vale retomar a teoria do campismo e entender sua dinâmica, ou ainda, mais precisamente, o seu poder de atração sobre as organizações que se colocam como "a esquerda".

As leituras campistas da realidade nos dizem, em apertada síntese, que os grandes conflitos sociais ocorrem em torno de dois campos ou polos principais, sendo ambos muito abrangentes: num dos campos, aglutina-se o que há de pior na sociedade, o obscurantismo, a direita hidrofóbica, os liberais mais exaltados, os "entreguistas", as elites que temem e desprezam o povo. Do outro lado, haveria a aglutinação das forças civilizadas, de pessoas e agremiações políticas que, estando mais ou menos à esquerda, seriam muito diferentes do polo maligno adversário. Trata-se, pois, de uma oposição entre um campo conservador ou reacionário, a escória do mundo, de um lado, e um setor progressista, uma esquerda em sentido muito genérico, uma aglomeração pró-cidadania, pró-democracia, pró-civilização.

Partindo dessa caracterização, o campismo traz em si uma utopia, qual seja: a unidade dos progressistas, isto é, do campo não-conservador, em torno de um consenso mínimo democrático, uma vasta plataforma unitária de resistência contra o conservadorismo. É claro que, dentro dessa lógica, há gradações. Varia o alcance da unidade que se propõe a depender do agrupamento político, mas o raciocínio por trás do discurso é sempre o mesmo: a unificação a qualquer custo, a construção do consenso genérico como um fim em si mesmo.

Desgraçadamente, o campismo exerce pressões também sobre as organizações marxistas. E estas, não raro, acabam capitulando, ainda que nos marcos de uma mediação oportunista. Qual seria esta mediação? Algo muito simples: num passe de mágica, coloca-se um sinal de igual entre o suposto campo progressista e os interesses da classe trabalhadora. Assim, de repente, chega-se a um resultado espantoso: uma ofensiva contra um membro desse campo se torna uma ofensiva contra as massas exploradas e oprimidas do país. Fustigar Lula, nessa visão, seria fustigar o conjunto dos trabalhadores, seja simbolicamente, seja como o primeiro passo de uma catástrofe. Eis uma elegante solução para quem deseja ceder às pressões campistas sem arcar com o ônus de se desfazer formalmente do marxismo. Pois o marxismo, com todo o seu linguajar típico, pode muito bem ser usado como uma mera roupagem vistosa para esconder um conteúdo oposto ao que ele verdadeiramente propõe. É precisamente este o sentido do termo "oportunismo".

Numa concepção marxista, a divisão fundamental na sociedade capitalista é a divisão entre as classes sociais, e isto se reflete no âmbito político. Isto significa, portanto, que a verdadeira oposição de interesses está no conflito capital-trabalho. A oposição entre campos que aglutinam partidos e forças sociais de classes diferentes, nessa perspectiva, não se confunde de modo algum com o antagonismo entre a classe dominante e a classe dominada. É por isso que a polarização social existente entre um campo burguês liderado politicamente pelo PT - mas que reúne no seu interior tanto frações burguesas quanto partidos de esquerda, entidades sindicais e movimentos populares -, e um campo burguês mais homogêneo, possui um sentido social completamente distinto da polarização efetiva entre a burguesia e o proletariado. Mais do que isso: na maioria das vezes, esse antagonismo entre os campos assume um papel de aparência ideológica que esconde o conflito essencial.

Para essa mistificação ideológica campista, seguramente concorre a dicotomia direita x esquerda. Uma dicotomia que é muito mal interpretada: até podemos, sem incorrer em campismo, falar em direita e esquerda, mas com a condição de concebermos esse par enquanto variações no espectro político, ou seja, enquanto posições relativas no cotejo entre determinadas políticas ou determinadas organizações. Podemos dizer, assim, que certo agrupamento político está à esquerda ou à direita de outro, mas nunca supor que partidos tão diferentes como PT e PSTU, por exemplo, são parte de um mesmo bloco, apenas variando no seu radicalismo.

De uma vez por todas, é preciso entender que a esquerda, assim como a direita, é uma posição relacional a ser medida na concretude política, e não um campo aconchegante, um confortável consenso mínimo entre forças de natureza semelhante. Esta percepção, no entanto, está fora do alcance dos setores que se postam como a esquerda brasileira - o que, aliás, é bastante compreensível. Com efeito, somente a tradição bolchevique, em sua radicalidade marxista, pode levar a concepção da luta de classes até o seu limite decisivo: a compreensão de que, em função do antagonismo insuperável entre as classes sociais, os revolucionários são tão distintos dos reformistas como a água em relação ao óleo, e que apenas de maneira episódica e casual haverá pontos em comum entre as organizações revolucionárias e reformistas.

Esta afirmação, por certo, soará brutal para os campistas, inclusive para aqueles que tentam transformar o marxismo num campismo enfeitado - um campismo no qual se convenciona mudar o nome dos campos para classes sociais e se diz: "aqui estão as classes, não duvidem de nosso marxismo". No entanto, é necessário dizer com todas as letras: a esquerda não é um princípio cósmico que agrega todo o material humano progressista do mundo em suas diversas gradações. A esquerda, pensada como campo, não é mais do que uma abstração, uma vulgarização extremamente imprecisa (daí seu papel de distorção) dos reais e materiais interesses de classe do proletariado.

Dito isto, há que se entender o seguinte: ainda que, com muita boa vontade, pudéssemos admitir diferenças substanciais entre o PT e seus rivais ocasionais, tais como o PSDB e o PMDB (e não falta boa vontade aos reformistas), tal exercício não seria suficiente para, num critério marxista, identificarmos a luta entre esses partidos como expressão da luta entre o proletariado e a burguesia. Pelo contrário: quanto mais identificamos os vínculos orgânicos desses três partidos e de seus satélites partidários com a classe capitalista, mais se percebe a substancialidade do laço que os une. São todos órgãos funcionantes do mesmo sistema político, todos agentes diretos, enquanto representação parlamentar e governamental, das frações capitalistas existentes no Brasil.

Mas se estão todos unidos na representação do capital, por que lutam tanto entre si? Ora, pelo mesmo motivo que os capitalistas individuais estão unificados, enquanto classe, na sucção da mais-valia do conjunto do proletariado produtivo, mas rivalizam entre si na concorrência pelas maiores fatias do montante do valor excedente coletado. E também pelo mesmo motivo que cada capitalista comunga com os seus irmãos de classe o interesse de superação de um período recessivo, mas briga asperamente com eles para não suportar o pior da crise, ou seja, para que algum outro que não ele seja sacrificado no necessário processo de falências e desvalorizações que caracteriza o mecanismo saneador da acumulação capitalista. Os burgueses, é bom lembrar, estão dispostos a sacrificar os trabalhadores e também os seus pares para salvar a própria pele. Ao fim e ao cabo, a partilha coletiva da mais-valia não anula a competição, antes a pressupõe no funcionamento do mercado.

Pois bem: com o sistema político do capital, dá-se o mesmo. PT, PMDB e PSDB estão irmanados nos seus serviços de gestão estatal capitalista. Todavia, com o esfacelamento do sistema nos moldes em que vinha funcionando nos últimos anos, abre-se uma disputa feroz: cada partido luta para empurrar a maior parte do ônus da crise política para o seu colega. Nessa disputa, o PT tem levado a pior. Como esteve à frente dos negócios de Estado nos últimos 13 anos, tornou-se a vitrine ideal com a mesma facilidade com que colheu o prestígio eleitoral referente ao período de crescimento econômico. E como a crise política é profunda, queimando figuras públicas dos principais partidos, descortina-se a oportunidade de formação de novos quadros políticos para o regime. Eleva-se o grau de autonomia dos agentes da Polícia Federal e do Ministério Público, juntamente com as ambições individuais de suas direções. Daí o peso extraordinário das investigações policiais e das medidas judiciais no cenário político atual.

E ainda há mais: a intensidade da crise política expôs as entranhas do sistema político com rara nitidez. Nunca antes foi tão cristalino que os partidos rivais do regime são engrenagens de um mesmo maquinário, órgãos do mesmo organismo. Nunca foi tão nítido que os grandes nomes dos partidos são apenas a ponta do iceberg num profundo esquema de interpenetração entre a administração pública e os capitais privados. Logo, não se poderia esperar que esse sistema político, para se recompor de tamanho abalo, seria reerguido tão somente com a imolação de Dilma Rousseff e Eduardo Cunha. Há necessidade de mais nomes para serem imolados no processo de saneamento da democracia burguesa - é dizer, para que ela volte a ser tão corrupta e degenerada como antes, mas com mais estabilidade. Lula é uma figura de peso, e pode cumprir essa função, por mais que, conforme comprovou inequivocamente uma das falas gravadas de Renan Calheiros, o ex-presidente seja um homem de confiança do regime e da burguesia de conjunto.

E por que Lula? Para os campistas, trata-se de uma formidável oportunidade para o campo conservador destruir o campo progressista, ou o conjunto da esquerda, pois se entende que aniquilar Lula e aniquilar todas as organizações ditas de esquerda é a mesma coisa ou quase isso. Para os marxistas, atentos à dinâmica da luta de classes (a qual possui também um aspecto conflitivo interclasse, quer dizer, rivalidades entre as seções da classe dominante), a explicação é diferente. O ex-presidente em questão, nitidamente, é o principal representante político do setor da burguesia que mais se expandiu nos últimos anos, a saber: o empresariado da construção civil. Com Lula, esse setor expandiu sua esfera de acumulação para além mesmo do território nacional, contando com uma política econômica que o privilegiava muito mais do que a tradicional e dependente indústria nativa (com Fiesp e companhia à frente). E com Dilma, um governo de continuidade, houve um favorecimento ainda maior dos capitalistas da construção civil e de grupos ligados ao imperialismo., sobrando menos benefícios para a seção "não prioritária" da burguesia brasileira - note-se que, mesmo nas relações interburguesas, não se pode agradar a todos! Mas como as empreiteiras foram duramente fragilizadas, sobretudo no seu nível de influência política, a partir dos escândalos da Petrobrás, a principal base de sustentação burguesa do lulopetismo desmoronou, sendo que o apoio popular ao governo já havia se perdido desde junho de 2013. Eis o elemento central: num cenário de competição selvagem intercapitalista, quem perde é sempre o lado mais frágil. No último período, o lado mais frágil, mais desgastado em suas bases de sustentação, é o PT, e é por isso (e não pelo ódio de uma classe capitalista que lucrou enormemente nos últimos 13 anos) que a maior parte do fardo da crise política recai sobre as costas desse partido.

Os campistas lamentam profundamente. Os marxistas, para serem coerentes com a lógica de classe, devem lamentar também? Seria preferível, por certo, que o ônus do desarranjo político fosse distribuído mais rapida e "democraticamente" entre todos os partidos da ordem, entre todos os membros efetivos do sistema político. Contudo, na falta de uma dinâmica isonômica e objetivamente impossível (já que não seria possível imaginar igualdade de poderes entre as frações burguesas), não se pode dar suporte ao partido burguês que definha primeiro. Seria como dizer: "todos vocês, partidos burgueses, merecem cair, mas como não tiveram a decência de desmoronar ao mesmo tempo, como não tombaram juntos numa cena coreográfica, não posso aceitar que apenas um de vocês seja sacrificado".

No entanto, nossos campistas não chegam sequer a considerar o PT como um partido burguês, ou ao menos como um partido invariavelmente a serviço do capital. Preferem enxergá-lo como uma força política acima das classes sociais, como um grupo de indivíduos bem intencionados, ainda que acovardados, como uma soma de pragmáticos que, por vezes, peca pelo excesso de "zelo", mas que faz a política "possível". Preferem ver no PT o partido do "aquilo que temos para hoje", e ai daqueles que, sectários e ultraesquerdistas, propuserem um caminho alternativo de ruptura com o capital.

Para justificar sua posição, os campistas tendem a abstrair completamente as relações do PT com a burguesia, relações estas que são generosamente concebidas como casuais ou até mesmo inevitáveis, sob pena de ostracismo e total insignificância política. E ao fazerem esta abstração, resgatam o fantasma do PT dos anos 1980 e, agora, do Lula sindicalista, líder operário. E o fazem para dizer: "não é o Lula amigo dos empresários que está sendo perseguido, mas sim o grevista combativo do passado, o filho do povo, o homem simples saído da pobreza que desafiou o abismo entre a elite e os mais pobres".

Cumpre, porém, alertar os adeptos práticos ou teóricos do campismo que o significado social da figura de Lula não é aquele que está presente nas mentes dos setores mais direitistas da burguesia ou da chamada "classe média". Se o imaginário dessas pessoas fosse uma força material, quem sabe o ex-presidente tivesse se enfrentado efetivamente com a burguesia em algum momento, quem sabe tivesse algum traço do comunismo que tanto se tenta lhe imputar. Não é assim que funciona: o significado social de Lula é dado pelo papel objetivo que ele cumpriu e cumpre na luta de classes, e não pelas opiniões que certas camadas da população desenvolvem sobre ele - sobretudo quando se trata de camadas numericamente reduzidas, e sobretudo quando tais opiniões são tão desprovidas de fundamento racional. O mesmo vale para o PT: as teorias da conspiração sobre o partido, dignas de filmes de ficção, remetem a um simbolismo delirante que está longe de balizar tanto a política das frações burguesas quanto o sentimento político das massas. Basta um pouco de sobriedade na análise para se constatar que nem a grande burguesia enxerga alguma sombre de "perigo vermelho" no PT e nem as massas proletárias vêem no partido algum tipo de imagem refletida da sua condição social. Esses tempos já se foram.

Nesse sentido - e aqui fazemos um chamado aos campistas egressos do marxismo para que façam a viagem de retorno, nem que seja por um breve instante -, interpretar os ataques de direita ao PT como ataques a todos os trabalhadores pelo fato de Lula e seu partido serem, nessa concepção, um "símbolo" da "esquerda", como se isso implicasse uma ameaça iminente até mesmo contra os socialistas, é tomar a representação distorcida do real pelo próprio real. É imaginar que a salvação dos marxistas depende da preservação do PT, que é justamente um grande obstáculo ideológico ao desenvolvimento de uma autêntica consciência de classe. É almejar uma entrega a partidos dessa estirpe de um direito de hegemonia por tempo indeterminado, como se seu papel fosse reservar o assento do poder até que os revolucionários tenham condições de se sentar sobre ele. Não se poderia, com efeito, imaginar nada mais despropositado.

Que não haja dúvidas: Lula significa, do ponto de vista da luta de classes, o projeto da conciliação, o desarme do proletariado, a esperança de que o capitalismo, se bem administrado, poderia reservar um lugar ao sol para todos. Lula significa o abandono da estratégia revolucionária em favor da criação de laços orgânicos com o empresariado, assim como a adesão aos métodos dos empresários e dos partidos tradicionais. Os marxistas, portanto, não podem reivindicar para si essa figura, não podem tomá-lo como "um dos nossos", não podem preterir seu presente burguês em favor do seu passado operário.

Sem sequer desconfiar dessa imperiosa necessidade, os campistas fazem da defesa de Lula uma tarefa inadiável, e hoje se vê, da maneira grotesca, agrupamentos políticos e indivíduos que, invocando uma tradição marxista e revolucionária, deixam-se tragar por esse movimento de capitulação. Nisto se percebe, com nitidez, a mecânica objetiva do campismo, ou seja, seu sentido histórico real: não apenas como um método de raciocínio político, mas ainda como uma perigosíssima tendência a ser combatida.

Podemos pensar o campismo como um vetor integrante da ideologia reformista que incide sobre todas as organizações e indivíduos situados mais à esquerda, e que os pressiona para o oportunismo, que os seduz com um discurso que dissolve as diferenças políticas e programáticas em nome de uma mítica unidade da esquerda, dos democratas, dos progressistas ou do que for. Para os marxistas, que são sempre minoritários em condições de normalidade, o canto de sereia do campismo aparece como um atalho para as massas, como uma unificação volumosa com uma série de siglas, supondo-se que a somatória dos braços faça o barco se mover de maneira inabalável. Todavia, de que adianta essa somatória se os revolucionários remam numa direção e os reformistas, sempre majoritários em condições de normalidade, remam na direção oposta? Ora, os campistas não se indagam sobre isso, até porque tal questionamento, na sua própria formulação, fede a sectarismo e autoproclamação (que horror!). Parece-lhes muito mais agradável e realizador a circunstância de que estejam todos, apesar das diferenças, na mesma embarcação.

Em sua crença, ainda que inconsciente em certos aspectos, na existência de um núcleo essencial de "esquerda" comungado pelos reformistas, pelos centristas, pelos revolucionários e talvez por todos que não sejam fascistas ou protofascistas, os adeptos do campismo são constantemente pressionados para se apegarem ao suposto núcleo, deixando-se de lado as caprichosas e "puristas" fronteiras de classe. Prisioneiros dessa estreita visão política, orbitam em torno de uma imaginária unidade da esquerda, acalentando o senso comum de que "a esquerda só se une na prisão" - como se, não raro, uma parte dessa "esquerda" não fosse diretamente responsável pelo encarceramento da outra, conforme iniciativas como a lei antiterrorismo.

Evidentemente, há desigualdades no movimento de capitulação campista. Afinal, a órbita das forças políticas campistas ao redor do denominador comum admitido como "esquerda" - e não é preciso ser um gênio da matemática para se saber que um denominador comum se caracteriza pelo seu valor rebaixado, pelo mínimo irredutível - não perfaz um círculo perfeito; com efeito, ela está mais para uma elipse. Às vezes, os campistas se arriscam, se afastam do mínimo irredutível, erguem os punhos - é o caso dos grupos da frente popular de combate. Entretanto, quando cai por terra o governo de frente popular, a plêiade campista se reaproxima do seu centro emanador, refugiando-se na concepção "minimalista" de esquerda, suspirando nostalgicamente pelos tempos cômodos em que o reformismo (ou pseudorreformismo) no governo parecia inabalável, dando ensejo a uma militância rotineira de exigência e denúncia.

Oscilando entre posicionamentos mais audaciosos e mais conciliatórios, o campismo conspira contra a estratégia de construção de uma direção revolucionária para o proletariado. Pelo menos para os trotskistas, a quem esta questão é muito cara, a política campista deveria ser um crime. No caso recente envolvendo Lula, vê-se o quanto desse método ainda se faz presente nas elaborações e posições de diversas correntes do movimento socialista. Terrível vício, e por certo um indicador de que muita gente não aprendeu nada com a malfada experiência do PT, prontificando-se para trilhar o mesmo caminho e vociferar contra quem apontar a insensatez dessa escolha. Felizmente, o trabalhador comum, apesar de todo o peso da ideologia cotidiana, está menos inclinado ao autoengano convicto. Aliás, arriscamos dizer que ele não moverá um dedo sequer para salvar Lula: ainda que "instintivamente", ele sabe que já não há no ex-presidente nada com que possa se identificar - e é justamente esta janela de oportunidade que os marxistas devem aproveitar.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Democracia, golpe e impeachment

O espectro do golpe ronda a política brasileira. O que é, afinal, um golpe? Formou-se um senso comum na esquerda segundo o qual esta categoria corresponderia a uma ruptura institucional que poderia se dar com ou sem o concurso das forças armadas. Haveria, assim, o golpe em sentido clássico, ou seja, uma quartelada, e uma versão mais amena, mais sutil, na qual haveria uma quebra da legalidade por forças políticas da esfera civil. Um impeachment sem lastro jurídico seria, nessa acepção, uma prática golpista, uma quebra da institucionalidade.

Isso é o que diz o senso comum da esquerda atual. Está em falta, no entanto, uma análise propriamente marxista do fenômeno do impeachment e da própria noção de golpe. Propomo-nos a trazer alguns poucos avanços nessa direção, uma vez que se trata de algo grave: saber se estamos diante ou não de um movimento golpista é uma percepção fundamental na luta de classes.

Antes de discutir os temas do impeachment e do golpe, precisamos ter uma caracterização marxista muito bem definida acerca da democracia liberal, que é o regime que dá as referências para toda a discussão. É preciso conhecer bem a natureza e as formas da democracia liberal para que se possa apresentar uma visão isenta de fetiches e de histeria, sobretudo quando a maior parte da intelectualidade, em geral inorgânica em relação ao proletariado, aderiu prontamente à tese de que há um golpe “branco” (não entraremos aqui na questão do racismo linguístico) em curso sob a forma de impeachment.

A democracia liberal é a forma pela qual o Estado se manifesta em condições de normalidade, é o regime preferencial, por assim dizer, da ordem social capitalista. Esse regime é caracterizado centralmente pelo sufrágio, que consiste no elo principal entre a sociedade civil e o Estado, entre o domínio dos interesses privados e o domínio do interesse público. E a contrapartida do sufrágio é a representação parlamentar, por meio da qual os partidos da ordem, representando as frações de classe e determinados grupos de interesse, disputam entre si os rumos da política estatal.

No sufrágio, cada indivíduo é chamado a exercer sua cidadania, a colocar-se como um átomo indiferenciado no processo decisório nacional, no exercício da soberania popular. Mas isso é feito de modo que cada pessoa se despe de sua condição de classe e se nivela perante as demais. Os votos dos capitalistas valem tanto quanto os votos dos trabalhadores, predominando, assim, a igualdade jurídica formal. Contudo, é aí que reside a máxima ilusão da democracia liberal, pois ela cuida de transferir essa “vontade popular” consubstanciada em milhões de votos atomizados para o âmbito da representação parlamentar, ou seja, para um espaço de Estado que é constituído para organizar as relações entre os representantes das classes e de suas frações, para ser um balcão de negócios dos partidos da ordem atrelados a interesses determinados.

Por essa lógica, a democracia liberal pretende sequestrar a política, monopolizá-la, confiná-la ao terreno institucional. As mudanças políticas devem ser reivindicadas pelo voto nas urnas, e de vez em quando se admite algumas exigências por fora do calendário eleitoral, mas desde que não comprometam a chamada ordem pública, isto é, desde que não abalem o cotidiano da dominação capitalista.

Em adendo, a democracia liberal trabalha com a chamada separação ou divisão dos poderes. De fato, o poder de Estado se legitima pelo sufrágio, mas o seu exercício se pauta por regras constitucionais que definem uma divisão de trabalho no interior do aparato estatal, de tal sorte que, segundo os liberais, chegar-se-ia a um mecanismo harmônico de freios e contrapesos, o único modo de se evitar o arbítrio e a tirania. É por isso que as leis, expressão peculiar do poder de Estado, passam por um processo de criação previamente estabelecido pelos órgãos legislativos, são sancionadas e aplicadas pelos órgãos executivos e submetidas a apreciação judicial, em caso de lide, pelos órgãos jurisdicionais. Fizemos aqui uma simplificação um tanto rude, mas que serve ao nosso propósito de ilustrar essa organização funcional do exercício do poder nas democracias liberais.

Numa leitura marxista, podemos identificar que, nas democracias liberais, destaca-se o parlamento como aparelho de Estado dominante no interior da constelação de aparelhos apresentada pelo regime. Nas variações presidencialistas, o parlamento se encontra um tanto eclipsado, mas ele não deixa de dar a última palavra no funcionamento efetivo do poder. E em caso de crises políticas, de impasse entre as forças atuantes, as engrenagens do aparato mais desarranjadas acabam cedendo lugar a outras que se encontram menos afetadas no jogo político. É assim que vemos, por exemplo, a entrada em cena, com destaque acima do normal, de órgãos menos ligados às correntes partidárias (se não individualmente, ao menos institucionalmente), como o Judiciário e determinadas instituições policiais.

Entretanto, seria um erro imaginar que o Judiciário ocupa apenas uma posição auxiliar no regime em questão. Isto é verdade para o jogo político, mas não para o cotidiano da luta de classes. Na democracia liberal, prevalece a judicialização dos conflitos, no sentido de se enquadrar os antagonistas sociais como sujeitos jurídicos que devem observar os direitos alheios e que devem evitar o abuso de seus próprios direitos. Assim como no sufrágio, as classes desaparecem, e o que se tem nesse arranjo institucional liberal é apenas um confronto entre cidadãos litigantes, pouco importando se pertencem a uma classe explorada que busca resistir à exploração ou se pertencem a uma classe exploradora que pretende ampliá-la. E cabe ao Judiciário, nesses conflitos, colocar-se como um terceiro pretensamente imparcial e decidir a lide, fazendo com que a luta de classes sempre seja desempenhada no terreno seguro do Estado de Direito.

No Judiciário, a repressão política dá-se com ares de punição a crimes comuns. Em seu suposto "pluralismo", a democracia liberal não reconhece crimes políticos. Não há, como nas ditaduras, a figura da subversão e dos inimigos do Estado. Mas isso não quer dizer que ela seja generosa com os movimentos contestatórios que estremecem a mansuetude da dominação burguesa. O que ela faz é enquadrar movimentos políticos em categorias do direito penal comum, ou seja, adotando um modo de reprimir que é aplicável virtualmente a qualquer cidadão, sem diferenciações ou privilégios. Esse enquadramento, todavia, é conduzido pelo aparato policial e chancelado pela jurisprudência contra a única classe que tem necessidade de mobilizar-se constantemente, o proletariado. Assim sendo, a violência "democrática", "liberal", é uma forma dentre outras de violência de Estado, e que mesmo adotando um discurso neutro e universal, só pode ter como destinatário a classe subalterna. É a igualdade jurídica formal a serviço de uma coerção estatal absolutamente desigual.

Para completar esse panorama geral, é indispensável recordar um fato que muito se quer esquecer: a democracia liberal, enquanto um regime político determinado, enquanto uma manifestação concreta do Estado, não deixa de ser Estado, ou seja, não se furta ao cálculo de interesse de classe e de poder. Ela não perde, assim, as suas atribuições repressivas e ideológicas, apenas as processa à sua maneira. Tampouco ela é indiferente ao nível de intensidade da luta de classes e às peculiaridades de cada formação social, o que envolve, inclusive, questões raciais, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade etc.

Ao levarmos isto em conta, teremos uma visão muito mais sóbria a respeito da democracia liberal. Mais do que isso: teremos condições de compreender porque os regimes democráticos mundo afora, inclusive nos países mais desenvolvidos, conviveram longamente com a escravidão, com a segregação racial, com a exclusão de direitos das mulheres, com o colonialismo, com o genocídio de povos indígenas, com a suspensão de certas liberdades etc. Enquanto forma política de dominação numa dada formação social capitalista em condições de normalidade, isto é, sem abalos que levem a soluções bonapartistas, ditatoriais ou fascistas, por exemplo, a democracia liberal condensa em si as determinações políticas do seu tempo e lugar e as acomoda, não sem contradições, dentro da sua aparelhagem institucional.

Em sua apologia à democracia liberal, os ideólogos do regime, seguidos de perto pela esquerda reformista, deixam de lado que esse modelo institucional, apesar de apregoar a igualdade formal, é de todo compatível com as mais aberrantes iniquidades. Veja-se, por exemplo, a questão LGBT: trata-se um amplo segmento populacional que se encontra privado de diversos direitos civis na maior parte do mundo pelo simples fator de sua orientação sexual. E o que dizem os reformistas? Que a democracia ainda não amadureceu o suficiente, mas que, cedo ou tarde, ela contemplará plenamente essas pessoas. Não lhes perturba o fato de um regime que se pretenda “democrático” possa admitir esse tipo de discriminação por tanto tempo.

E isso não é tudo. Ao ignorar a simples circunstância de que a democracia liberal traz em si todas as determinações da forma política do Estado, os liberais e os reformistas novamente são obrigados a observar casos de violência estatal ou de condutas ilegais por parte dos próprios agentes do Estado como um problema de falta de consolidação da democracia. Esse regime, segundo eles, ainda não atingiu a sua plenitude, a sua pureza, mas quando isso ocorrer, os agentes policiais e os representantes políticos estarão completamente subordinados à lei, sob pena de serem sancionados pelo Judiciário. Eis uma visão romântica e idílica sobre o regime político atual, uma visão que despreza o fato de que o Estado necessariamente possui uma vida dupla, de que ele, enquanto aparato orientado por um cálculo de poder e interesse, transita entre a legalidade e a ilegalidade conforme a conveniência. É assim, a título ilustrativo, que se dão as políticas que deliberadamente extrapolam o uso da força contra manifestantes e contra a população pobre: trata-se de um objetivo político de intimidação que não aparece em nenhum programa de governo e em nenhum código disciplinar, mas que faz parte do funcionamento estatal regular.

Pois bem. E o que essas reflexões sobre a democracia liberal podem agregar para a compreensão das noções de golpe e impeachment? Em primeiro lugar, podemos concluir que o cometimento de ilegalidades pelo próprio Estado não significa uma ruptura no padrão de funcionamento do regime. As ações estatais que ultrapassam os limites da legalidade, mesmo sob a democracia liberal, fazem parte da lógica de Estado e são cotidianas. O que ocorre é que, em situações de crise política, o sistema político (a constelação partidária em sua correlação de forças interna, em seus compromissos e disputas) revela as suas entranhas, seus nervos ficam expostos. Negociações em torno de cargos e dotações orçamentárias, articulações entre parlamentares e membros de cortes superiores, alianças e traições, subornos e chantagens, enfim, toda a crueza do jogo político nos marcos da ordem se mostra ao mundo, saindo de seu confinamento subterrâneo. Esta é a vida rotineira do Estado, e nem por isso a democracia se transforma em outro regime. Ela é aquilo que ela se apresenta normalmente, mas também, e principalmente, aquilo que ela esconde, e que, por vezes, vem à tona.

Nesse sentido, não se pode imaginar que um ato ilegal no jogo político seja um golpe, como se fosse algo que questionasse toda a lógica do regime liberal. Um golpe, para ser, de fato, uma quebra no padrão de funcionamento desse regime, exige uma intervenção externa aos aparelhos de Estado que conduzem o jogo político na democracia liberal. O simples desrespeito às regras do jogo se choca com a película do liberalismo, com a sua imagem aparente, mas em nada prejudica o seu conteúdo, e que consiste nas rivalidades entre as frações capitalistas e no seu enfrentamento contra os interesses do proletariado. É por isso que somente uma intervenção militar poderia, com efeito, atentar contra o padrão de funcionamento dos aparelhos de Estado sob uma configuração liberal.

Cumpre perceber, pois, que um impeachment mal fundamentado juridicamente não é mais golpista ou menos golpista do que uma decisão do STF que contrarie uma disposição constitucional, e como já ocorreu em diversas oportunidades. A observância das atribuições e da divisão liberal dos poderes dá corpo à normalidade do regime democrático, pois é esse critério formal que instrui esse tipo de regime. Diferentemente de uma intervenção militar não autorizada, que reposicionaria o aparelho dominante (“troca” do parlamento pelas forças armadas) sem uma tramitação institucional interna e autorregulada.

Além do mais, não se poderia argumentar que o impeachment contraria o princípio do sufrágio, dado que a deposição do governante por essa via se dá a partir de um órgão composto por representantes eleitos. Do ponto de vista formal, a mesma soberania que elegeu um presidente elegeu, também, o congresso que pode vir a depô-lo. Num contexto em que os reformistas se tornaram os campeões do liberalismo político, é estranho que não se atenham a isso.

Por fim, deve-se notar que o impeachment é um processo fundamentalmente político, e que mesmo que a constituição indique a hipótese de crimes de responsabilidade, isto se trata, novamente, apenas da aparência do mecanismo. Afinal, a apuração técnico-jurídica de determinado crime incumbiria a um órgão judicial, como se infere da divisão interna de trabalho no interior do Estado. Um julgamento que se dá por parlamentares só poder ser um julgamento político, pois o seu resultado e mesmo a sua tramitação serão o produto não de um exame técnico, mas de uma dada correlações de forças partidária. A imputação de prática ilegal é apenas uma justificativa formal para chancelar uma linha política de manutenção ou derrubada de um presidente. Não reconhecer isso é desconhecer a natureza dos órgãos parlamentares e nutrir uma concepção irreal do jogo político – o que justamente se vê agora por parte daqueles que fizeram da realpolitik uma profissão de fé.

Se ao parlamento é dado interromper um mandato presidencial, isto ocorre porque a esfera parlamentar congrega o conjunto das representações burguesas, instituindo-se como uma praça comum de todos os grandes capitalistas, uma arena onde os principais capitais podem se fazer representar. Mesmo num modelo de presidencialismo de coalizão, não há espaço suficiente no executivo para se agregar todas as correntes de interesse burguesas. Por essa razão, a constituição confere ao legislativo, a seara burguesa mais universal na sua representatividade, a prerrogativa de destituir a presidência. E esta, por sua vez, só será destituída caso se encontre numa posição de isolamento político e social. Pouco importa, sob o ponto de vista da luta real entre os antagonistas no sistema político, se houve cometimento de crime ou não. Um governo que cai é um governo que não se sustenta, que carece de aliados em número suficiente para mantê-lo no jogo. A escolha dos motivos “oficiais” do impedimento é secundária. O que importa, na realidade, é a disputa encarniçada pelo poder.

Com essas observações, queremos demonstrar que, na perspectiva da sagrada democracia liberal dos reformistas, não há nenhum golpe em curso. Podemos ter motivações políticas para nos opormos ao impedimento, sobretudo quando se trata de “trocar seis por meia dúzia”, já que, no caso brasileiro atual, Dilma e Temer apresentam o mesmo projeto para o país (por mais que as bases do governismo insistam em ser indulgentes com o neoliberalismo petista e intolerantes com o neoliberalismo alheio). Outra coisa, muito diferente, é anunciar um golpe. Proclamar aos quatro ventos que a democracia está ameaçada é não só um erro teórico, como também um argumento de terrorismo político, uma aposta frentepopulista no medo ancestral do retorno das elites – como se elas tivessem abandonado seu posto em algum momento.

E para que não haja margens para interpretações desonestas sobre o que estamos afirmando: o impeachment é, em qualquer situação, uma saída conduzida pelas classes dominantes. Ele é uma ferramenta da democracia liberal, tanto quanto seus órgãos e suas instituições, e que resulta da divisão dos poderes, da própria proeminência do parlamento sobre o executivo em última instância e até mesmo do próprio sufrágio. Mas cuidado, reformistas, com a crítica radical do impeachment, pois ela pode levar à crítica radical do liberalismo político que lhes é tão caro!


Não banalizemos, pois, o termo “golpe”, tampouco confundamos as manobras e trapaças nas lutas interburguesas com as restrições às liberdades das massas, que já são mínimas. Não há nenhuma fração burguesa interessada em promover tais liberdades – nem por parte do bloco encabeçado pelo PT e nem por parte dos segmentos da direita mais tradicional. Muito pelo contrário. Todos esses grupos, que hoje travam um embate feroz, estiveram unidos para restringir ainda mais os direitos de manifestação e organização das massas (fortalecimento da ABIN, UPPs, Copa do Mundo, lei “antiterrorismo” e por aí vamos). Os reformistas se opuseram a tais medidas, mas não falaram em golpe. Reservaram essa palavra para a derrocada de uma frente popular isolada e socialmente desgastada, o que lhes parece muito mais dramático do que o recrudescimento do aparato repressivo sob a gestão petista. A ruína do governo lhes tocou muito mais do que a violência de Estado que ele alimentou, e isso diz muito sobre o perfil do nosso reformismo contemporâneo.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Eleições presidenciais: algumas críticas e um prognóstico



A campanha eleitoral das candidaturas principais é uma média aritmética em torno de um senso comum despolitizado, que deseja um "progressismo pasteurizado" ou, o que dá no mesmo (copo meio cheio ou meio vazio), um "conservadorismo light". A regra é recuar à direita num primeiro, para não correr o risco de soar "radical", e esboçar movimentos à esquerda no instante seguinte (ou vice-versa), para não ser associado ao obscurantismo

Marina, Dilma e Aécio têm feito estes dois movimentos, variando a quantidade conforme a conveniência para cada candidato. A base social conservadora de Aécio lhe permite menos margem de manobra, mas ele não pode soar ultrarreacionário - daí defender agora o casamento gay e a criminalização da homofobia (a vexatória decadência do Pastor Everaldo prova que não há espaço para a extrema direita nestas eleições); a base social de Dilma, por sua vez, permite mais margem de manobra, até porque a esquerda governista está disposta a engolir alegremente qualquer atrocidade vinda por parte do governo; porém, a população quer mudanças, quer uma guinada, nem que seja simbólica (como eleger uma figura ainda não testada), e isto o PT não pode oferecer: não falo aqui do programa da esquerda, há muito abandonado por esta organização, mas o simples fato de ser partido da situação pesa contra ele numa conjuntura em que os ecos de junho de 2013 ainda se fazem ouvir, mesmo que mais fracos. E não bastará que Dilma anuncie que mudará a equipe de governo, caso eleita (tirar Mantega etc.). 

Pois bem: neste jogo de oportunismo, os candidatos vão se assemelhando, se aproximando, vão forjando um denominador comum. Quem poderá embolsá-lo? Marina leva vantagem porque não carrega o desgaste acumulado pelos partidos tradicionais e porque conseguiu vender a ideia de que está no limbo. Em parte, isto é verdade: se ela vencer mesmo as eleições, o que teremos mesmo, além de um governo politicamente frágil, é uma síntese: em suas idas e vindas, ela funde os lamentáveis giros à direita do PT (incapaz de reconhecer nos recuos de Marina a história dos seus próprios recuos) e os fraudulentos discursos "progressistas" do PSDB, aparentemente mais "tolerante" nos "costumes". 

É precisamente por isto que o perfil "marinista" arranca votos historicamente ligados ao PT e ao PSDB, o que causa um nó na cabeça dos petistas - e somente na cabeça dos petistas, penso eu, pois os tucanos já devem ter se percebido (muito tardiamente) o que ocorreu. Em sua mediocridade política, o tucanato tem vivido essencialmente do rancor antipetista pela direita, um rancor que se explica por um problema de “não aceitação”. Assim como a Igreja Católica e os católicos da época medieval nunca aceitaram os cristãos novos (judeus convertidos à força ao cristianismo), por mais que estes fizessem as mais profundas juras de amor ao novo credo, o velho conservadorismo brasileiro (que abrange setores das três classes fundamentais da sociedade) nunca reconheceu plenamente o PT, por mais que tal partido tenha se dedicado com todas as suas forças na infame tarefa de servir ao capital. Ao PSDB, portanto, bastava opor-se ao petismo para se manter. Com Marina, esta vida fácil acabou, sobretudo quando a nova candidatura se mostra mais promissora na missão de desbancar a sucessora de Lula.

Por outro lado, o PT pagava ao PSDB na mesma moeda: seu grande trunfo perante a classe trabalhadora, sua suprema virtude, desde a decepção com a expectativa de mudanças profundas, foi o fato de não ser o PSDB. Ou seja, também o petismo alimentou-se do antitucanismo de setores de massas, cuja justificação está nos anos sofríveis de neoliberalismo clássico, old school(hoje temos um neoliberalismo reinventado), de FHC. Vemos agora que também já não basta não ser tucano para dar conta da nova situação política do país.

Em se confirmando a vitória de Marina, quem sairia mais prejudicado? Do ponto de vista eleitoral (a única coisa que importa aos grandes partidos), penso que o PSDB fica em situação pior. Ao que tudo indica, perderá o governo de Minas Gerais, só lhe restando São Paulo, seu bunker histórico. O pífio Aécio só pode ser substituído por Alckmin, a menos que ocorra um milagre e uma figura convincente brote do nada no partido tucano. Mas Alckmin só é forte em São Paulo, e se concorrer mesmo à presidência em 2018, vai se bater com Lula, que já o derrotou. E Lula é favorito porque, apesar do desgaste do PT, o possível fiasco de Dilma só demonstra que o lulismo é maior que o petismo. E se o lulismo é maior que o petismo, então todo o discurso governista em torno da “acumulação de forças”, da “disputa de hegemonia”, da “batalha pela consciência” etc., enfim, toda esta cantilena se mostra infundada. O esforço de décadas para se construir o PT, do ponto de vista político, só serviu para plasmar uma liderança carismática, cujo poder de transferir votos começa a se mostrar finito. Ou seja: “a montanha pariu um rato”. As capitulações dos seguidos governos petistas e a degeneração do partido sequer conseguiram garantir uma estabilidade eleitoral. E quando os votos significam tudo, como significam para os incorrigíveis reformistas e pseudorreformistas, isto não é pouca coisa.

Para quem perceber o ocorrido, a desmoralização será grande. Mas ao petismo mais empedernido, isto é indiferente, pois a eleição de Lula em 2018 apagará qualquer esboço, por parte dos governistas atuais, de repensar o que foi o PT. Olhando em perspectiva, verão como positivo o “intermezzo” Marina, como um intervalo no qual o petismo teria a chance de se revigorar, de ganhar novo fôlego e de reanimar sua imagem. Elegendo-se em 2018, Lula deve reeleger-se em 2022, salvo “acidentes de percurso”: uma nova Marina? Pouco provável. Uma crise econômica? Mais provável (até mesmo para o insuspeito André Singer), embora incerto. Se tudo correr bem para o PT, talvez o lulismo consiga forjar até uma nova Dilma. “A história se repete...”

segunda-feira, 17 de março de 2014

Uma democracia com métodos ditatoriais

Democracia e ditadura são regimes distintos, ninguém o negaria - ainda que uma democracia liberal seja uma ditadura no sentido de prevalência em última instância dos interesses da classe dominante. Deixadas de lado, provisoriamente, as determinações de Estado, podemos distinguir, sem medo de errar, os dois regimes, já que cada um deles comporta uma distinta configuração dos aparelhos repressivos e ideológicos de Estado. Consequentemente, o uso da violência estatal adquire feições diferentes nos dois casos: a violência ditatorial é "nua e crua", ao passo que a violência "democrática" serve-se de mecanismos institucionais liberais - o que pressupõe a observância de certas garantias individuais e de todo um procedimento legal por parte das autoridades.

Entre democracia e ditadura, há um meio termo: o bonapartismo. Poderíamos pensar os regimes bonapartistas como democracias liberais degradadas. Não chegam ao patamar repressivo de uma ditadura, pois as instituições liberais são preservadas, mesmo que um tanto pervertidas em sua lógica (alguns "sintomas" do bonapartismo: concentração exacerbada de poder no Executivo, fragilidade dos aparelhos ideológicos, uso rotineiro das Forças Armadas etc.). Diferente do que ocorre nas ditaduras, em que tais instituições são suprimidas ou reduzidas a elementos de encenação.

É evidente que, no Brasil, temos um regime democrático liberal. O problema é que, à bem da verdade, isto se torna cada vez menos evidente, de tal modo que, frente às medidas tomadas pelo governo federal e por diversos governos estaduais desde junho de 2013, torna-se pertinente indagar sobre as fronteiras entre democracia e ditadura.

O que faz do regime político brasileiro uma democracia liberal é a configuração de sua aparelhagem de Estado. No nosso país, o Estado ainda age segundo parâmetros liberais: a separação de poderes está presente, a violência oficial passa pelos filtros do Judiciário e existem liberdades democráticas. O eixo do poder político - ou melhor, do exercício do poder político - está no domínio civil, e não no domínio militar.

É claro que cada um desses pontos merece e exige algumas ressalvas. Primeiramente, cabe advertir que é "normal" que o poder executivo se destaque sobre os demais, e isto ocorre em todos os países do mundo (principalmente a partir do século XX). Apenas o capitalismo vitoriano da Inglaterra do século XIX conheceu a primazia política real do parlamento sobre o chefe de governo (talvez a França de 1830 a 1848), sendo que, no caso inglês, Executivo e Legislativo já se encontravam organicamente ligados.

Em segundo lugar, parece óbvio que sempre existe uma violência extraoficial, maior ou menor, a depender do contexto. o Estado, precisamente por ser Estado, garante a si mesmo a prerrogativa de violar a sua própria legalidade. Afinal, não poderia proteger as relações sociais de produção a qualquer custo se estivesse preso à letra da lei, por mais burguesa que venha a ser esta lei. O fundamento último da autoridade é sempre a força, nunca o direito.

E em terceiro lugar, podemos inferir que existem liberdades democráticas pelo simples fato de que as organizações de esquerda não foram lançadas à clandestinidade, e que a crítica política não é formalmente punida. É suficiente que os aparelhos ideológicos a condenem à marginalidade.

Se se encontram presentes os requisitos que caracterizam o regime democrático, o que resta para discutirmos, afinal?

Na verdade, o que chama a atenção na democracia brasileira de hoje é o modo como ela se apropria de práticas ditatoriais, mas sem por isso deixar de ser democrática no plano formal. Às vésperas do aniversário de 50 anos do golpe militar de 1964, constatamos que, nos dias de hoje, as classes dominantes brasileiras enfrentam as lutas sociais não mais ao velho estilo, aplicando quarteladas grotescas (1964 foi apenas uma de várias), mas de um modo mais sofisticado. O que vemos atualmente é um coup d'État sutil, diluído em diversas medidas governamentais esparsas e implementado pelas próprias instituições democráticas (e não pelas Forças Armadas) - o que nos dá uma democracia repleta de métodos ditatoriais.

Por óbvio, democracia nunca foi sinônimo de plena liberdade. Os regimes democráticos concedem liberdades políticas em maior ou menor grau - ou, se quisermos enxergar pelo avesso, restringem as liberdades em maior ou menor grau. As democracias podem ser mais ou menos abertas (ou fechadas), tendo como limite de referência, invariavelmente, as relações capitalistas de produção. No Brasil de hoje, o regime está se fechando, não há dúvida. Mas até que ponto o regime democrático pode continuar se fechando sem deixar de ser democrático-liberal, isto é, sem se transformar claramente numa ditadura?

Esta pergunta é importante porque, atualmente, em que pese a ridícula "reedição" da "Marcha da Família" organizada por saudosistas da ditadura militar, tais reacionários são muito menos ameaçadores para as liberdades democráticas do que figuras como Fernando Grella, Geraldo Alckmin, José Eduardo Cardozo e Dilma Rousseff. Estes agentes de Estado, ao criminalizarem as formas de protesto, constrangem muito mais a ação das forças políticas de esquerda do que a extrema direita atual - diferentemente do que se deu há 50 anos atrás, quando houve um movimento de massas direitista que endossou o golpe.

Contudo, seria um grande erro personalizar o fenômeno da repressão contemporânea, pois o que importa aqui é a lógica de Estado num contexto bastante determinado (reação às jornadas de junho e temor por tudo aquilo que diz respeito à Copa, este evento do imperialismo politicamente patrocinado pelos governistas com tanta entrega e disposição). Os métodos ditatoriais da democracia brasileira estão sendo elaborados e aplicados não só pelos agentes da cúpula do Estado, mas também pelos agentes intermediários: delegados, promotores, juízes e tantos outros - às vezes sob a direção organizada da cúpula, é verdade, mas nem sempre.

O que se percebe agora é uma procura sistemática nos dispositivos legais em vigor para se criar teses no sentido da criminalização. Veja-se bem: a criminalização está longe de ser uma novidade; o que me parece peculiar é a produção de teses para ampliá-la, o que aparece nos novos enquadramentos. Exemplos: tipificação da mídia ninja no RJ como crime de falsidade ideológica (!) - como se eles estivessem se passando por jornalistas e cometendo uma espécie de fraude; tipificação do Bloco de Lutas no RS como "milícia" (!!); detenção de pessoas em SP pelo puro e simples "risco" (!!!) de praticarem crimes; e um longo etc.

Já vimos movimentos semelhantes contra o MST no início deste século, mas nada tão sistemático e disseminado como o que ocorre agora. Até mesmo a Lei de Segurança Nacional renasceu das cinzas. Por toda parte, há esforços para se fechar as arestas de liberdade que o regime oferece, e o impulso deste movimento vem inequivocamente de cima para baixo - e não o oposto, por mais que não falte em setores da "sociedade civil" o desejo de recrudescimento da repressão.

A democracia "importou" da ditadura algumas instituições (como a PM) e leis (como a LSN), mas não pode ser uma cópia exata. É preciso, na perspectiva de quem domina, implementar o mesmo conteúdo (restrição às liberdades) sob uma forma diferente. Como peculiaridade, a democracia amplifica a interpretação e a aplicação do código penal, fazendo-o sob o discurso do império da lei - pois um código de leis é sempre algo muito liberal. Os agentes do Estado passam a torturar a letra da lei até obter dela o enquadramento necessário (por mais escatológicas que sejam as teses), da mesma forma que muitos policiais torturam os suspeitos para obter confissões e encerrar seus casos. Temos uma estranha fusão entre democracia e ditadura: a forma da primeira envolvendo o conteúdo da segunda.

Se a democracia tem se aproximado tanto da ditadura - e com isso concluo -, é pela razão de Estado que sustenta os dois tipos de regime. Sendo o Estado, com as mediações sociais da forma política, a violência de classe organizada, não admira que este Estado sirva-se do terror como expediente (os regimes fascistas mostraram esta lógica no seu paroxismo). A criminalização desmedida da política e da contestação social, inclusive sob a crescente mediação da forma jurídica e de suas instituições, consiste na versão "democrática" do terrorismo estatal. Sim, terrorismo é a palavra: incutir na vanguarda e nas massas o sentimento de que lutar não vale a pena, de que a força das armas é superior à força da mobilização, de que o medo é o conselheiro mais prudente. A falsidade desta ideia que se quer divulgar, porém, está amplamente demonstrada na história das revoluções - uma história que, como processo, não é apenas passado, mas também um presente muito vivo neste nosso mundo em ebulição, fecundo em sonhos e possibilidades.